Aproveitar da vulnerabilidade

Você sabe o que é proselitismo?

O termo proselitismo deriva da expressão “fazer prosélitos”, palavra que designa as pessoas procedentes de outros povos que se preparavam para acolher a fé. No versículo 15 do capítulo 23 do Evangelho de São Lucas, algumas traduções da Bíblia – como a da CNBB – trazem no texto a expressão “converter alguém”, enquanto outras traduções – como a Pastoral – usam a expressão “fazer prosélitos”. A Igreja assumiu esse termo referindo-se à missão apostólica dos cristãos dirigida ao mundo inteiro [1].Com o passar dos anos e a experiência prática da evangelização, percebeu-se aquilo que o Papa Bento XVI chamou de “proselitismo agressivo”, e o Santo Papa João Paulo II denominou “proselitismo das seitas”. Por isso, é importante conhecermos bem o sentido do termo e a forma com a qual foi empregado durante os anos, a fim de distingui-lo com maturidade quando for anunciado.

Antes do século XX, o uso da palavra proselitismo era sinônimo de apostolado ou evangelização. O proselitismo era visto como uma tarefa apostólica, a qual implica um profundo respeito pela liberdade de conversão. Esse era o uso do termo, que tem origem na Bíblia e se consolidou no uso da evangelização que tem – e sempre teve – como fundamento a liberdade de conversão. Com frequência o texto bíblico nos fala daqueles que ouvem, que creem e que se convertem, em sinal de escolha e decisão própria, o que permitiu a coerência entre proselitismo e evangelização. Seguindo essa tradição, o termo era usado no sentido da proposta ou convite com que os cristãos desejam compartilhar a Boa-Nova.

Discursos de conversão

Na passagem de Pentecostes, Pedro discursa aos judeus, romanos, cretenses, árabes e aos prosélitos [2], dos quais receberam o batismo os que aceitaram aquelas palavras [3]. Esse batismo foi o primeiro que se realizou em nome da Santíssima Trindade, como o próprio Cristo instruiu [4] e como praticamos na celebração do sacramento. O livro do Atos dos Apóstolos também nos conta sobre o discurso de São Paulo em Antioquia da Pisídia [5], pelo qual muitos o seguiram e se tornaram fiéis à graça de Deus [6].

Você sabe o que é proselitismo

Foto Ilustrativa: esolla by Getty Images/ cancaonova.com

O discurso nos mostra a admirável maneira pela qual São Paulo apresentava o Evangelho a um grupo de prosélitos, contando-lhes a história da salvação, situando Jesus como o Messias esperado, demonstrando como as diversas etapas que conduzem a Cristo são transitórias, enquanto o próprio Cristo Jesus é definitivo. Esses exemplos dos discursos dos pilares da Igreja, que são Pedro e Paulo, por muito tempo conduziram o uso da palavra proselitismo com o sentido de cumprimento da missão evangelizadora da qual os santos apóstolos deram exemplo.

Contudo, o termo proselitismo começou a ser acompanhado de um sentido negativo, principalmente quando se falava na evangelização de pessoas mais vulneráveis. No Conselho Pontifício Cor Unum, em 1998, encontra-se um claro exemplo da mudança de paradigma em relação ao proselitismo. No documento se fala do proselitismo entre os refugiados, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade, precisamente no âmbito das dificuldades do exílio.

Essa situação demonstra a importância da compreensão das diferenças entre as pessoas e do momento oportuno em que elas receberão o anúncio da Boa-Nova de coração livre e tranquilo. É dizer que não se pode aproveitar do medo e do sofrimento para infundir uma crença inconsciente e superficial, pautada no desespero, ao invés de permitir a conversão livre pela fé em Jesus Cristo.

Aceitar Jesus livremente

Em um discurso aos bispos da Ásia Central, o Papa Bento XVI explicou que “a Igreja não impõe, mas propõe livremente a fé católica, ciente de que a conversão é o fruto misterioso da ação do Espírito Santo” e advertiu que “é proibida qualquer forma de proselitismo que obrigue, induza e/ou atraia alguém com enganos inoportunos a abraçar a fé”. O Pontífice defendeu que “uma pessoa pode abrir-se à fé depois de uma reflexão ponderada e responsável e deve poder realizar livremente essa inspiração íntima”. Não se trata de suspender a evangelização ou abrandar a doutrina, e sim de perceber que a conversão deve acontecer pelo encontro íntimo com Deus, que alcança a cada pessoa de um modo particular. Na verdade, o caminho incessável da evangelização é o testemunho com a própria vida, sendo exemplo de amor ao próximo, para que sejamos reconhecidos como discípulos de Jesus Cristo [7].

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Sinceridade e liberdade

A orientação é de que os missionários procurem ensinar as verdades da fé aos que julgarem preparados para receber a mensagem evangélica, de modo que, quando eles o pedirem livremente, possam ser admitidos a receber o batismo. Notem como a norma reforça a ideia de conversão pelo diálogo sincero, pelo testemunho e pela formação, de modo que o batismo seja concedido àqueles que livremente se converterem.

No mesmo sentido, é o Decreto Ad Gentes que trata sobre a atividade missionária da Igreja. No item 13, sobre a evangelização e a conversão, orienta que os não cristãos, sob a inspiração interior do Espírito Santo, se convertam livremente à fé no Senhor, e adiram sinceramente Aquele que, sendo “caminho, verdade e vida” [8], cumula todas as suas esperanças espirituais, mais ainda, supera-as infinitamente. Sinceridade e liberdade são, portanto, alicerces da evangelização.

Proselitismo não é evangelizar

Dessa forma, os atos de imposição de fé ou aproveitamento da vulnerabilidade não servem de meios para o cumprimento da ação missionária da Igreja. E esses meios lamentáveis passaram a ser conhecidos como proselitismo, agora, de forma geral, ou seja, não mais acompanhados da expressão “das seitas” ou “agressivos” que os Papas antes utilizaram. O termo proselitismo se tornou eminentemente negativo. De acordo com a nova interpretação do termo, o Papa Francisco já explicou que “evangelizar não significa fazer proselitismo”. E essa explicação é mesmo importante atualmente, pois as aparências e o reconhecimento mundano parecem ter maior importância do que a concretude das ações e as obras de Deus.

O Papa Francisco, ao afirmar que evangelizar não significa fazer proselitismo, falava sobre aqueles que reduzem a evangelização para uma função, ou seja, são catequistas, leitores, ministros, missionários, mas o fazem como algo separado de suas vidas particulares, ou seja, dizem que “eu desempenho esta função, sou um funcionário catequista, sou funcionário disto, daquilo… E, depois, continuo a minha vida”.

O Pontífice defende que um cristão deve receber a missão evangelizadora como uma necessidade de levar o nome de Jesus que vem do próprio coração. O Papa citou o exemplo de que a evangelização do irmão doente deve ser de modo a nos aproximarmos, não o enfadar com conversas, mas estar próximo dele, assisti-lo, ajudá-lo, hipótese que está estritamente relacionada com a evangelização dos mais vulneráveis que, com o passar dos anos, deu o significado negativo ao termo proselitismo.

Atenção com o contexto

O termo proselitismo foi originalmente usado como a prática da evangelização, através do anúncio do Evangelho para conversão dos não cristãos. No decorrer dos anos, surgiram aqueles que se aproveitavam da vulnerabilidade das pessoas para impor a fé e até mesmo aqueles que praticavam a ação missionária com a intenção de se autopromover, afastando-se da missão que Jesus Cristo nos deixou e, consequentemente, perdendo a comunhão com a Igreja. Essas práticas atraíram para si o termo proselitismo, atribuindo-lhe o significado negativo. Portanto, ao deparar-se com o termo nas formações e nas leituras, é importante identificar o contexto para conferir-lhe o devido significado, considerando o que já foi sinônimo de evangelização, mas atraiu um significado negativo nos últimos tempos.

Assim, irmãos e irmãs, estejamos atentos ao nosso modo de evangelizar, tendo sempre em nossos corações a acolhida e a disposição ao serviço missionário, de forma a fazer o bem ao próximo e sermos reconhecidos como discípulos de Jesus Cristo por nossas obras de amor e não por palavras próprias. O bom cristão não é atraído pela declaração constante de sua fé como se fosse um título, mas, antes disso, transparece as virtudes cristãs por suas obras e ações. Reconhecidos como verdadeiros discípulos de Jesus na evangelização, as palavras, os argumentos e os debates virão em momento posterior, quando o irmão afastado se mostrar pronto para converter-se livremente. Que assim seja!

CITAÇÕES DO TEXTO BÍBLICO

[1] (Mc 16, 15); [2] (At 2, 11); [3] (At 2, 41); [4] (Mt 28, 19); [5] (At 13, 16-43); [6] (At 13, 43); [7] (Jo 13, 34-35); [8] (Jo 14, 6).

REFERÊNCIAS

BENTO XVI. Discurso aos bispos da Ásia Central por ocasião da visita Ad Limina Apostolorum. Vaticano, 02 out. 2008.
BENTO XVI. Discurso aos prelados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Regional Nordeste-3) em visita Ad Limina Apostolorum. Castel Gandolfo, 10 set. 2010.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB, 18 ed. Editora Canção Nova.
A BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. 86 ed. São Paulo: Paulus. 2012.
ESCRIVÁ DE BALAGUER, Josemaría. Caminho – 9ª ed. – São Paulo: Quadrante. 1999.

ETCHEGARAY, Roger Marie Élie; CHELI, Giovanni. Conselho Pontifício “Cor Unum” e Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes. Vaticano, nov. 1998.

FRANCISCO. Meditações matutinas na Santa Missa celebrada na capela da Casa Santa Marta. Vaticano, 9 set. 2016.
JOÃO PAULO II. Carta por ocasião do Centenário da Coroação de Nossa Senhora Aparecida. Castel Gandolfo, 17 jul. 2004.
SAGRADA BIBLIA. Traducción y notas Facultad de Teología Universidad de Navarra. Edição Digital. Editora EUNSA. 2016.

Equipe Formação Portal Canção Nova


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