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Diário de quarentena: conflitos familiares

Em primeiro lugar, quero comemorar o fato de que isso aqui é um texto e não um vídeo ou um áudio, porque vocês iriam rir muito da minha voz. Não sei se vocês lembram, mas meu pai leva a sério tudo que chega pelo WhatsApp, e a vida dele tem se resumido a acompanhar as notícias, vídeos e áudios sobre o coronavírus. O critério dele para aceitar os conteúdos é simples: quanto mais absurdo e ridículo, mais ele acredita.

Por conta disso, neste momento, estamos tomando uma mistura caseira que o cara do vídeo garantiu que foi uma médica chinesa formada em Harvard (esse povo sempre escolhe Harvard, parece brincadeira) que começou a distribuir em algum lugar na China, e é por isso que a pandemia praticamente terminou por lá. Nem vou detalhar aqui os ingredientes dessa mistura, porque pode ser que tenha alguém lendo que seja louco o suficiente para testar em casa, e o resultado vai ser o mesmo que nós conseguimos aqui: além da coceira permanente na garganta, a nossa voz ficou mais anasalada do que a daqueles cantores sertanejos genéricos.

Diário de quarentena conflitos familiares

Foto ilustrativa: monkeybusinessimages by Getty Images

Quarentena em família

Semana passada, completamos um mês de quarentena. Espero que isso acabe logo, porque, pelos meus cálculos nada confiáveis (tirei três na última prova de matemática), nós não aguentaremos mais um mês de confinamento de jeito nenhum. Antes disso, ou meu pai perderá o emprego ou minha mãe vai morrer de esgotamento físico. Ou as duas coisas vão acontecer simultaneamente.

Minha mãe não para de trabalhar. É limpando casa, lavando roupa, estendendo roupa, fazendo comida, lavando prato, arrumando quarto, limpando casa de novo (porque, quando ela termina, já está tudo sujo) e assim vai. Ninguém ajuda além de mim. E aproveito o espaço para confessar que nem tenho ajudado tanto assim, mas é porque dá raiva ver minha irmã, simplesmente, ignorando quando minha mãe pede uma ajuda para lavar um prato. Ela continua com o fone, como se não fosse com ela, e lá pela décima vez minha mãe acaba desistindo de chamar e ela mesma vai lavar. Nesse ponto, eu ganho fácil da minha irmã. Minha mãe nunca me chama mais do que seis vezes.

Meu pai não ajuda em nada. Como ele está trabalhando em casa (em home office, como ele costuma dizer, só que bem mal pronunciado, sai tipo um “ômi óifissi”), essa é a desculpa dele para tudo. Se minha mãe pede para pegar uma colher e colocar na mesa, ele diz: “Até gostaria de ajudar, mas se lembre de que estou trabalhando em casa, em ômi óifissi”. E ele nem precisa estar no notebook para usar essa desculpa esfarrapada.

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Uso excessivo dos aparelhos eletrônicos

Outro dia, ele estava deitado no sofá vendo TV, e minha mãe, que estava na pia lavando prato, pediu para ele ir buscar a toalha para minha irmã, que tinha gritado “Esqueci a toalha!” lá do banheiro. Ele disse para eu ir, porque ele estava trabalhando em casa e, naquele momento, ele estava usando os cinco minutos de descanso que sempre tinha no trabalho para desestressar a cabeça. O problema maior, no entanto, não é esse. Como falei, tenho certeza de que se essa quarentena não acabar, meu pai vai perder o emprego, porque ele descobriu que dá para colocar o WhatsApp na tela do notebook.

Eu não sei exatamente o que meu pai faz no trabalho, mas duvido que alguém pague para ele ficar vendo vídeo no WhatsApp o dia todo. Volta e meia, vejo, na TV ou nas redes sociais, algum psicólogo preocupado com a interação da família neste tempo de quarentena, ressaltando como é importante que a comunicação se mantenha em níveis harmoniosos, e que para isso é fundamental que não haja nem excesso de informações sobre a pandemia nem o uso intensivo de aparelhos eletrônicos.

Sempre que vejo alguém falar disso, fico com a clara impressão de que observaram nossa casa e se limitaram a aconselhar os outros a fazerem exatamente o oposto do que nós fazemos. Antes, eu nem me preocupava com isso, achava que era bobagem, até que faltou energia. Sim, anteontem faltou energia um dia inteiro aqui no quarteirão e a situação ficou muito tensa. À medida que o tempo foi passando, minha irmã e meu pai foram ficando desesperados, porque os celulares deles já estavam no fim da carga. Eu sempre lembro de desligar o Wi-Fi e o Bluetooth, mas meu pai nem deve saber como fazer isso. Já minha irmã fica com o fone sem fio o tempo todo, então já sabe.

Quando falei que meu celular ainda estava com cinquenta por cento, minha irmã quase morreu de raiva, e meu pai ainda levantou a hipótese de trocarmos de celular, porque era importante que ele se mantivesse atualizado. Aí, eu falei do celular da mamãe, que ela quase nunca nem pega. Minha irmã e meu pai saíram correndo para o quarto e minha irmã ganhou, mas meu pai falou para ela entregar o celular para ele imediatamente num tom que fez meu coração gelar. Vi que minha irmã, primeiro, ficou frustrada, mas, em seguida, entregou o celular com um sorriso no rosto: estava descarregado, como quase sempre. Minha mãe está sempre tão ocupada, que sequer lembra de colocar para carregar.

Comunicação familiar

Nisso chega minha mãe, feliz como uma criança que ganhou um doce, dizendo que aquilo tudo era uma enorme providência para que nós conversássemos e crescêssemos como família. Que todos guardaríamos o celular e nos sentaríamos à mesa para partilharmos as nossas vidas, sentimentos, frustrações, expectativas. Achei que meu pai fosse morrer, mas ele não falou nada, só pediu para aguardar um pouco, porque o celular dele ainda tinha dois por cento de bateria.

Minha mãe sentou-se e eu, meu pai e minha irmã, agora, rezávamos silenciosamente para que a energia voltasse, mas não voltou. Fomos para a mesa, e minha mãe fez uma longa e alegre introdução, mas quando parou de falar e declarou aberto o espaço da partilha, nada aconteceu. Envergonho-me disso, mas eu, minha irmã e meu pai permanecemos de cabeça baixa, incapazes de olhar nos olhos uns dos outros. Depois de longos minutos, minha irmã levantou a mão. Senti-me aliviado, porque, finalmente, alguém iria começar.

“Posso ir ao banheiro?”

“Já vamos terminar”, disse minha mãe. “Já que vocês não falam, eu tenho umas coisinhas a partilhar.”

E minha mãe deve ter falado por umas duas horas sem interrupção. Ouvimos tudo em silêncio, porque tínhamos a consciência pesada. O que ela disse era a pura verdade – sentia-se só e sobrecarregada no serviço doméstico, nós não conversávamos, ficávamos o dia inteiro no celular, naquela casa ninguém mais brincava nem sorria, o clima era tenso, triste etc.

Ontem, meu pai levantou e foi logo lavar os pratos que haviam ficado do jantar. Minha irmã e eu arrumamos as nossas próprias camas e minha mãe não podia se conter de alegria. Essa empolgação da gente durou só um dia; hoje, já voltou tudo ao normal, mas percebi que nenhuma reportagem, nenhum vídeo mencionou a solução que nós descobrimos para reconstruir a harmonia familiar: é só um carro bater em um poste e derrubar a energia do bairro. Só que isso tem que acontecer dia sim, dia não.

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