União e amor com Deus

Como acontece a efusão do Espírito Santo nas quartas moradas?

Santa Teresa de Jesus nos ensina, nas quartas moradas, o forte amor de Deus

Como vimos no artigo anterior desta série Caminho Espiritual e as Moradas, Santa Teresa de Jesus relaciona a passagem para as quartas moradas como o momento em que a alma se torna disponível à graça, de tal modo, que a oração ganha uma força e uma natureza sobrenaturais. Sobrenatural, aqui, quer dizer acima da capacidade normal ou natural, manifestando-se claramente como uma iniciativa de Deus em nosso anterior.

A alma já habituada à oração e que se encontra no final da vida ascética conseguiu superar as dificuldades iniciais do contato com Deus e corre em busca de uma intimidade ainda maior. Assim, se a oração era, a princípio, um retirar de água de um poço profundo somente com um balde, aos poucos vai ganhando método, desenvoltura e aperfeiçoamento. Com o próprio auxílio de Deus, já não existe grande dificuldade para entrar em oração. Um pouco de silêncio e uma leitura espiritual são as alavancas necessárias para estar diante do Senhor na oração. A retirada dessa Água Viva, embora ainda seja resultado de um trabalho, já se pode dizer que é menos penoso, como se o poço agora fosse equipado com cordas e roldanas. Tira-se mais água com menos esforço.

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Foto Ilustrativa: Arquivo CN/cancaonova.com

Vida de oração

Por que insistir nesse trabalho todo? O que dá ânimo para continuar?

Santa Teresa chama a felicidade e a paz interior desse início de jornada de “contentamentos”. Os contentamentos são alegrias que nos dão ânimo e prazer na vida espiritual, que nascem de pensamentos, reflexões que se adquirem em meditação e se elevam para Deus. Assim, ao meditar um mistério do rosário e encher-se de alegria com a resposta de Maria, que mesmo correndo grande risco resolve dizer ‘sim’ ao projeto de Deus, isso produz um contentamento espiritual. Essa alegria nos eleva até Deus e nos faz contemplar a beleza do seu plano amoroso para nós.

Os contentamentos são cada vez mais facilmente adquiridos a partir da oração afetiva e da simplicidade. Na oração de simplicidade, comparada à rega do jardim através de canais ou um sistema de irrigação, no artigo anterior, basta abrir-se à ação de Deus. O simples fato de estar em sua presença nos enche de contentamentos.

Aqueles que vivem nessa dinâmica com frequência experimentam um vivo desejo de abandonar as coisas do mundo. Afinal, sem esforço, deliciam-se com a presença de Deus e começam a entender que não existe nada que se compare a isso. Essa fonte viva e inesgotável será todo o nosso alimento no céu.

Santa Teresa afirma que, ao notar essa disposição, Deus dá uma nova forma de oração. Esse quinto grau de oração é a primeira forma de oração própria da vida mística e a primeira verdadeiramente sobrenatural. Chama-se oração de recolhimento infuso.

Essa oração é um recolhimento sobrenatural onde os sentidos, embora vivos e atentos, conseguem se recolher em oração e permanecer centralizados, mesmo em meio à agitação exterior. Diz-se “sobrenatural”, pois é evidente que isso não pode ser causado por esforço humano, e não se trata de uma concentração extrema ou qualquer forma de autoimposição ou treinamento. Também não se trata de um transe ou perda de consciência. Somente se instaura uma união tão grande e intensa, onde nada que ocorre à volta e exteriormente pode quebrá-lo. Por outro lado, é tão suave, que pode ser rompida a qualquer instante, desde que aquele que reza assim o deseje.

Aprofunde-se na oração como Santa Teresa

Quem teve a oportunidade de assistir ao documentário “O Grande Silêncio”, filmado na grande Chartreuse, o mosteiro principal da ordem cartuxa na França, pode observar esse recolhimento infuso logo no início. Um monge reza em sua cela em profunda oração. Sem nenhum sobressalto, e, ainda de joelhos, abre os olhos, vira de lado e mexe no aquecedor que se encontra no meio do quarto, possivelmente alimentando o fogo. Em alguns instantes, volta à sua posição de oração habitual e retoma o recolhimento como se nada tivesse acontecido. Oração profunda e atenção exterior se encontram aí irmanadas sem nenhum conflito.

Santa Teresa explica esse tipo de oração dizendo que nossa alma possui muitas faculdades que desconhecemos e que, nesse caso, é como se elas atendessem ao silvo do pastor que chama suas ovelhas. De onde estão, permanecem completamente atentas. Embora a inteligência e a vontade permaneçam livres, existe uma conexão com Deus que não se pode entender de onde vem e permanece estável.

Nesta oração de recolhimento infuso, Deus possui, cativa e conforta. Por breves instantes, vivifica a alma e é possível sentir a divina presença que nos habita e envolve. Esse estado é o primeiro estágio do que se chama de contemplação: a alma entra em si e em Deus. Existe uma suspensão e um silêncio espiritual que são portadores dos dois gêneros de contemplação. Classificadas pelos santos padres como querúbica, dos querubins, ou seráfica, dos serafins. Aquela contemplação que traz luzes de sabedoria e revelações, é a querúbica, e aquela que faz aumentar o amor e a presença de Deus é a seráfica.

Algumas dicas importantes da mestra em vida interior não devem ser esquecidas. Esse tipo de oração é uma grande dádiva de Deus e não devemos nunca cessar de Lhe agradecer por isso. Também deve se entender que é importante deixar Deus realizar o que bem desejar neste momento, sem querer ajudá-lo ou se esforçar para pensar e entender. São João da Cruz chama esse tipo de estado da oração de recolhimento de notícia amorosa e geral (2S – XIV,12), e lembra que, neste caso, precisa-se somente focar em estar na presença de Deus (2S – XV).

Embora praticamente impossível de se descrever, essa oração gera frutos bem concretos. Cresce a confiança na misericórdia de Deus, e que Ele nos ajudará a vencer as dificuldades e provações. Consegue-se (e se quer) afastar cada vez mais das coisas do mundo e entende-se que é necessário, mais do que nunca, perseverar.

São João da Cruz lembra que, neste tipo de oração, é importante não achar que não se está fazendo nada. Essa suspensão logo será recompensada por Deus e é conveniente esperar com paciência (3S – II).

Leia mais:
.: Série – Caminho Espiritual e as Moradas
.: Série – Virtudes Morais e Cardeais
.: Combate da oração: o que a Igreja diz?
.: Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo

Os gostos de Deus e a oração de quietude

Após a oração de recolhimento infuso, e como mais um fruto desta, Deus envia uma nova série de consolações e um novo modo de oração. Por inverter o fluxo, e não subir mais do ser humano até Deus, mas de Deus para o ser humano, Santa Teresa diferencia esses movimentos chamando-os de gostos. Os gostos vem diretamente de Deus e são infundidos no cristão agindo, na maioria das vezes, como uma dilatação do coração (Lc 21, 32). Essa repercussão física é o único modo de se entender que Deus age na alma. São João da Cruz explica essa dilatação e outros sintomas físicos que, por vezes, chegam a ser dolorosos, a lenha verde que é colocada no fogo. Quando o fogo do Amor de Deus encontra uma lenha ainda verde e úmida pelas coisas da terra, o seu intenso calor faz com que ela chie, estale e, até mesmo, arrebente a madeira.

Que isso não seja causa de espanto ou medo, pois, embora Deus tenha a iniciativa, no caso da repercussão física se tornar por demais dolorosa, basta interromper a oração. O importante é entender que, se por um lado a sensibilidade física é parte da renovação que Deus opera em todo o ser, por outro lado é um sinal da sua operação no fundo da alma.

Desta forma, Santa Teresa de Jesus compara os contentamentos com a água que, trazida por aquedutos à custa de esforço e meditação, derramam-se na fonte interior do coração fazendo surgir a experiência deleitosa da presença de Deus. Os gostos, por outro lado, como são dados diretamente por Deus e sem influência do ser humano, fazem com que esta fonte interior comece a encher e transbordar sem causa aparente. Parece, e de fato é, que um rio subterrâneo a alimenta com uma enorme quantidade de água viva, trazendo paz e quietação na alma.

Se em relação aos contentamentos as potências da alma, entendimento – memória – vontade, participam intensamente para alcançá-los, em relação aos gostos eles são meros expectadores. Podemos dizer, portanto, que os gostos são as manifestações físicas ou frutos sensíveis do dom de sabedoria e da virtude da caridade agindo sobre a alma, já explicados no artigo anterior. Temos aqui a verdadeira visita do espírito santo em missão sobre a alma.

Presença de Deus

Como são ações puramente sobrenaturais e independentes da ação do homem, é comum essa presença sensível de Deus e o dilatar do coração, promovidos pelos gostos, manifestarem-se em momentos que o cristão não está se dedicando à oração. Isso causa grande perplexidade, pois contraria tudo que se vivia e pensava sobre oração até então. Embora a alma sinta a presença de Deus como adquirida na oração, não há nada que faça que possa fazer com que o momento dure ou acabe. O que se iniciou por pura vontade de Deus, durará enquanto Ele quiser.

Paralelamente à presença dos gostos, ocorre a oração de quietude, onde a união da vontade com Deus causa pleno descanso, refrigério, fortaleza, paz e felicidade. Essa água viva que jorra do interior (Jo 7, 38) é a mesma que faz com que a corça suspire (Sl 42, 1) e descanse plenamente em águas repousantes (Sl 23,2). Dentro deste sexto grau de oração, a alma sente que Deus começa a ouvir seus pedidos e a introduzir em seu reino dando mais virtudes, maior paz interior e mais alegria. Embora o entendimento e a memória continuem livres, e por vezes divaguem e se inquietem, pouco a pouco se tornarão mais acostumadas e dóceis ao domínio de Deus.

Para estas quartas moradas, então, a orientação de Santa Teresa é que se deve amar a Deus com a maior determinação possível em tudo e procurar não ofendê-lo de forma alguma. Há também o alerta de que, neste ponto, o demônio já percebeu os favores com que essa alma é agraciada por Deus e o grande dano que ela pode causar aos seus projetos. O combate aqui, portanto, é mais acirrado e eficaz.

No próximo artigo, veremos como o caminho através das quartas moradas leva a novos graus de oração e a um novo patamar de união com Deus: as quintas moradas.