São João Paulo II começa a carta encíclica Veritatis Splendor (1993) de modo belíssimo: O esplendor da verdade brilha em todas as obras do Criador, particularmente no homem criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26): a verdade ilumina a inteligência e modela a liberdade do homem, que, deste modo, é levado a conhecer e a amar o Senhor. Por isso, reza o salmista: «Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face» (Sal 4,7).
Não creio que alguém em sã consciência possa se opor a uma afirmação tão profunda quanto essa. No nosso íntimo, aspiramos à luz da verdade, e esta luz tem um nome: Jesus Cristo, que nos diz: “Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). Ninguém quer andar nas trevas do pecado, na sombra da morte… ninguém quer uma vida de mentira!
Por que não dizemos a verdade?
Se almejamos intensamente algo tão maravilhoso, por que caímos na mentira de modo tão frequente? Como fiz no artigo passado sobre as “formas de mentir”, farei aqui uma pequena lista (a partir das minhas observações do dia a dia e do que ouço no confessionário) de alguns motivos que nos levam a mentir. Darei exemplos para cada caso (muitos exemplos estão interligados, é normal, afinal, todos têm a mentira como pano de fundo). Não quero condenar nem ferir ninguém, somente pretendo tornar mais claro este assunto.
Mentimos…
– Para fugir da punição (do castigo): depois de ter quebrado a cafeteira do trabalho, André escreve no grupo do WhatsApp da empresa: “dia sem café: alguém quebrou a cafeteira e não disse nada!”.
– Para ter mais (direitos, fama, dinheiro, promoção etc.): Rafaela, para pagar menos impostos, exclui dos cálculos da declaração algumas atividades profissionais exercidas ao longo do ano.
– Para parecer melhor (ou mais importante): quinta-feira à noite, happy hour com os amigos que reclamam da queda nas vendas. Carlos, que trabalha numa concessionária de carros, diz a todos: “Estranho o que vocês contam, eu bati um recorde de vendas neste mês!” Diz isso consciente de que só vendeu três carros no mês (uma catástrofe!), e está à beira de ser despedido.
– Por falta de confiança em si (ou de estima de si): pode estar ligado ao exemplo precedente. Marina, que se relaciona com poucas pessoas por ser fechada e insegura, passa o tempo todo postando selfies sorrindo no Instagram com roupas de marca e legendas cultas. Resultado: muitos acham que ela é feliz e a invejam.
– Porque a realidade é dura demais: “tenho muitos compromissos, por isso não saio com vocês!”, diz Paola aos seus amigos para não contar que sua família é pobre e que não tem tempo para sair, pois tem que trabalhar muito para sustentar a casa.
– Porque temos inveja do que os outros têm: vendo suas amigas viajarem durante as férias para lugares fantásticos, Ana diz que só não vai viajar para os Estados Unidos porque não conseguiu o visto (que ela nem tentou!).
– Por medo de decepcionar: o pai de Mário faz um grande esforço para pagar a faculdade de Direito do filho. Mário, apesar dos esforços, não consegue tirar notas boas, e já teve que repetir matéria. Mas, para a família, insiste em dizer que está tudo bem, em vez de dizer a verdade e pedir ajuda.
– Para preservar a intimidade: João é um adolescente de 15 anos. O pai dele está internado numa clínica para dependentes químicos. Quando perguntam sobre o pai, ele diz: “meu pai trabalha numa plataforma de petróleo, por isso vive fora de casa”.
– Para evitar conflitos: Vitor foi para uma festa com os amigos e bebeu muito. Acabou dormindo fora de casa e traindo a noiva. Para evitar conflitos, disse apenas que dormiu na casa de um amigo.
– Por educação: Mariana almoça na casa de uma amiga, e mãe desta faz pato ao molho pardo para comer. Mariana odeia esse prato, mas para ser gentil, come e diz que gosta.
– Para sobreviver: aqui há algumas nuanças a se fazer. Pensemos num caso difícil: Ivo é um soldado que participa de uma guerra. Capturado, ele mente para sobreviver e proteger os demais soldados. Ele o faz para um bem maior, mas não deixa de ser uma mentira! É um pecado? No sentido estrito, sim. Porém, num sentido mais amplo, ela pode ser justificada, já que a situação é extremamente grave.
Poderia continuar a lista. Infelizmente ela é longa. Mas vou parar por aqui. Deixo apenas uma última pergunta para este artigo…
Leia mais:
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.: Que mal faz uma mentira?
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.: Como devo lidar com o perfil de uma pessoa mentirosa?
Para quem mentimos?
Diria que na mentira existem três dimensões:
Dimensão divina: o Senhor nos diz: “Orgulho, arrogância, caminho perverso, boca mentirosa: eis o que eu detesto” (Provérbios 8,13). Já dissemos anteriormente: Deus é verdade! A cada vez que mentimos, nós O ofendemos e nos afastamos d’Ele. Cada mentira que contamos ao outro ofende, ao mesmo tempo, Deus e o próximo – não somos filhos do mesmo Pai? Os que têm o coração duplo não podem ser, realmente, filhos de Deus. Quando Ananias mente para os apóstolos, Pedro lhe diz: “Não foi aos homens que mentiste, mas a Deus” (Atos 5,4).
Dimensão social: a verdade é uma virtude social. Quando mentimos a alguém, ofendemos nosso próximo, pois o privamos do direito à verdade; assim, faltamos necessariamente com a caridade. A mentira abala todos os fundamentos de uma sociedade e a impede de crescer. Nós, brasileiros, sabemos bem disso. Percebemos e nos decepcionamos tanto na política de nosso país com tantos escândalos de roubos e mentiras. Como isso prejudica o desenvolvimento de nosso povo! Com tanta mentira, como construir uma sociedade mais justa e igualitária, onde reinam o amor e a paz? Sem a verdade não pode haver a paz, já que a mentira alimenta a injustiça, e a injustiça gera conflitos.
Dimensão pessoal: a mentira exterior ocorre após uma mentira interior – antes de quebrarmos nossa relação com Deus e com os irmãos, algo já não está certo em nós mesmos. De certo modo, isso vale para todos os pecados. Os exemplos que dei anteriormente nos mostram que nossos medos, desconfianças, dúvidas, preconceitos, egoísmo e desejos de possuir são causa da mentira.
Após termos entendido melhor por que e para quem mentimos, no próximo artigo falaremos das consequências da mentira, do remédio e da necessidade de reparação. E Jesus dizia aos judeus que n’Ele creram: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus verdadeiros discípulos; conhecereis a verdade e a verdade vos livrará” (João 8,31-32).