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Sou obrigado a rezar por quem me odeia?

Em nosso último artigo sobre a oração, vimos como é um dever rezarmos uns pelos outros. Esse dever não possui exceções, pois contempla tantos os pecadores quanto os santos, e rezamos para que uns se convertam e para que os outros progridam sem cessar no amor a Deus.

Dito isso, Santo Tomás de Aquino nos lembra que “é necessário que nas nossas orações coletivas, que fazemos pelos outros, não estejam excluídos os inimigos.” Sim, o preceito emitido por Jesus em Mt 5, 44: “Orai pelos que vos perseguem e vos caluniam”, continua válido e necessário. Afinal, como Ele mesmo nos lembra, se fizermos o bem somente para aqueles que amamos e que nos amam, que merecimento teríamos? Até os pecadores e os malvados tratam bem aqueles a quem amam.

Como assim devo rezar por quem me odeia?

Antes de prosseguir com a necessidade da oração pelos inimigos e por aqueles que não nos amam (ou chegam até mesmo a nos odiar), precisamos entender um pouco sobre a dificuldade que temos em controlar a nossa raiva. Essa “paixão” da alma, também chamada de cólera, é a grande criadora do ódio e do rancor em nós, e foi bem estudada por um monge do século IV chamado Evágrio Pôncio, ou Pôntico, ou do Ponto, porque nasceu na antiga região “do Ponto” que pertencia à Grécia e atualmente faz parte da Turquia.

Sou obrigado a rezar por quem me odeia?

Foto ilustrativa: Bruno Marques/cancaonova.com

O monge Evágrio dedicou uma especial atenção às paixões da alma ou doenças espirituais, assim como a atuação dos demônios que promovem e instigam essas paixões em nós. Para viver bem o preceito de rezar pelos nossos inimigos e por todos aqueles que nos odeiam abertamente, é importante entendermos alguns princípios explicados por Evágrio.

Ensinamentos

O primeiro ensinamento é que, embora seja impossível amarmos a todas as pessoas igualmente, podemos aprender a agir de modo justo com todos com quem nos relacionamos, não alimentando em nós mesmos rancores nem ódios. Para isso, deve-se lembrar constantemente de que a raiva nunca deve ser dirigida para o pecador, ela só é útil contra o pecado. Todos os seres humanos continuam a ser imagem de Deus, mesmo que não se comportem como tal e, portanto, não existe ninguém que não é digno de ser amado.

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Deste modo, Evágrio é categórico em dizer que “não existe absolutamente cólera justa contra o próximo”. Se alguém busca a oração de pura intimidade com Deus, precisa dominar a cólera e vigiar os pensamentos que são seus brotos: a suspeita, a raiva e o rancor. Eles são os pensamentos que cegam o intelecto e destroem seu contato com Deus. São Paulo nos exorta a isso quando diz que “ergamos para o Senhor as mãos puras, sem cólera nem disputas” (1 Tim, II, 28).

Seu outro ensinamento neste campo é que nossa parte irascível, que nos faz fortes e determinados, precisa estar ordenada corretamente, isto é, submissa à razão. Quando isso acontece, ela nos ajuda a sermos resilientes e perseverantes na santidade e a combater ferozmente nossas fragilidades e as paixões que nos levam a pecar. Também ajuda a resistir e ser violentos contra os demônios que nos tentam e procuram desvirtuar. Infelizmente, um irascível descontrolado, é o que nos faz brigar e criar disputas com outras pessoas, criando rixas, desavenças e comportamentos “infernais” que não condizem com nossa própria filiação divina e nem com o mandamento do Senhor de nos amarmos uns aos outros.

Ou seja, segundo Evágrio, a ira só é adequada e corretamente ordenada se dirigida contra nossos verdadeiros inimigos: os demônios. Não contra os homens que são imagens e semelhança de Deus e que somos obrigados a amar incondicionalmente. É pensando nisso que ele explica que os demônios farão de tudo para que a nossa parte irascível seja insubmissa à razão e combata os outros homens. Usando uma metáfora, podemos dizer que o irascível é como um cão feroz que mora no nosso interior, ele precisa ser ensinado a nos defender dos lobos, que são os demônios, e nunca atacar as ovelhas que são nossos irmãos.

Quem você não gostaria de encontrar no céu?

Pensando nisso e entendendo que devemos ter ódio do pecado, não do pecador, precisamos amar no nosso inimigo por causa de sua existência, que é semelhança de Deus, e não deixar de amá-lo por causa do erro que cometeu ou da culpa que carrega. Mas esteja atento, pois mesmo aqueles que dizem não ter “inimigos”, cultivam desafetos e aversões secretas ou não. É o vizinho “que não me cai bem”, o atendente da loja que é “insuportável”, um patrão que “preferia que morresse”. Sejamos, num primeiro momento, honestos com nossos sentimentos para que, depois, possamos vencê-los com determinação.

Existe um teste bem simples para localizar em nosso interior esses de quem não amamos ainda o suficiente: quem você não gostaria de encontrar no céu? Algumas pessoas chegam ao absurdo de dizer: “Se fulano estiver lá, nem quero entrar”. São esses que, no nosso interior, são tratados como inimigos, mesmo que não o façamos socialmente.

Devemos, então, relembrar que o maior amor que pode existir por alguém, seja amigo ou inimigo, parente ou desafeto, é desejar a sua salvação eterna e a sua santificação na Terra. Aqueles que rezam pela salvação dos seus desafetos carregam um verdadeiro sinal de santidade, imitando perfeitamente Cristo, que rezou e intercedeu por seus assassinos.

Deus permite um mal temporário?

Embora devamos desejar sua correção e sua santificação, Santo Tomás também lembra que, às vezes, é lícito lutar contra os inimigos, pois, se isso não fosse possível, teríamos que admitir que todas as guerras seriam sempre ilícitas, e não o são. Neste caso, também chega a ser lícito rezar pedindo males temporais para os inimigos para que se corrijam, mas, obviamente, se – e somente se – o objetivo do pedido for a correção deles e não um pedido de vingança. Deus permite o mal para que o pecador se corrija e, pela correção, o pecado seja destruído e o pecador redimido.

Tomei conhecimento de um exemplo concreto disso quando uma religiosa me disse que havia rezado para que o seu irmão, um empresário muito bem sucedido, perdesse tudo. A oração foi atendida e o objetivo alcançado: levando uma vida insensível a Deus e voltada para o materialismo, a completa falência fez com que repensasse seus valores e mudasse finalmente o rumo de sua vida. Anos mais tarde, como um “bônus”, recuperou sua condição privilegiada de bens materiais, mas, graças a Deus, já havia se tornado um novo homem.

No próximo artigo, veremos que a oração é tão dinâmica e profunda que podemos rezar mesmo sem palavras. Até lá, coloque em prática sua vida de oração e reze por aqueles que ama, que conhece, mas também por aqueles que não ama tanto assim, que são desconhecidos e até por aqueles que você sabe que acabaram desenvolvendo um ódio ou declarando-se seus inimigos pelos erros que você cometeu ou, até mesmo sem motivo algum. Que possamos todos, sem exceção, gozarmos juntos da bem-aventurança celeste.

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