Deus se dá a nós

Deus, amando-nos, cria em nós a bondade. ‘O olhar de Deus é amar e conceder graças.’ (C 19,6) Deus, amor e dom, nos faz amor e dom. Fazer-nos à sua imagem é comunicar-nos seu ser. Somos dom.

Essa é a raiz do otimismo teresiano. É o que a faz transbordante e confiante na entrega de si mesma. A vida a pressiona de forma incontida por dentro, particularmente a partir de sua experiência mística, a partir do momento em que a presença do Amigo se impõe a ela e a envolve, lhe dá sustentação e lhe abre horizontes insondáveis. Essa presença vai à frente, definindo comportamentos e conteúdos, marcando ritmos de vida e de compromisso, e tomando-os possíveis.

A ação de Deus é eficazmente transformadora, transforma a partir da raiz, do ser. É o grande testemunho teresiano da vida mística, da presença atuante de Deus em nós. ‘Basta uma graça dessas para transformar uma alma por inteiro’.(C 27,9). ‘Não me parecia que eu conhecesse a minha alma, tão transformada eu a via'(V 38,9). ‘A própria alma não se conhece a si mesma’ (5M 2,7). ‘Ela não se parece consigo mesma'(Ibid, 8).

A verdade última do homem é ser dom. A experiência de Deus-Amor, que age comunicando-nos o seu ser, é experiência de si como ser radicalmente gratificado. A ação de Deus é criadora de um novo ser, assim São João da Cruz diz que a alma ‘está aqui vestida de Deus e banhada em divindade; não que ela esteja em cima, mas … nos interiores do seu espírito’ (C 26,1).

A ação de Deus alcança tão profundamente o homem, e o renova e gratifica de modo tão verdadeiro, que não só experimentamos dom. E chegamos a ter consciência de que somos mais dom e amor do que o seríamos pelo nosso próprio ser. “Esta é a grande satisfação e contentamento da alma: ver que dá a Deus mais do que ‘É em si e vale por Si’ (CH 3,80). Ela dá a Deus uma coisa sua que é adequada a Deus de acordo com seu infinito ser.”(Ibid, 79; cf. C 29,4; CH 4,17).

É o resultado, tardio porém real, da pressão amorosa de Deus com: vistas a recriar o homem, vencendo todas as fortes e pertinazes resistências que ele lhe opõe. São João da Cruz o percebeu claramente: ‘Pelo que foi dito, pode-se ver que Deus faz antes uma limpeza e uma purgação da alma dessas contrariedades do que a cria a partir do nada. Porque essas contrariedades e apetites são muito mais opostos e resistentes a Deus do que o nada, porque este não resiste.’ (IS 6,4)

Deus-Dom cria em nós o ser-graça e o ser-Dom. Sua graça não se sobrepõe ao nosso ser, mas o penetra, o toma ‘outro’, o faz maior e melhor que si mesmo, fá-Io transcender-se. A novidade se define segundo a linha e o conteúdo de quem age sobre ele e o gera. Deus vai libertando o homem, ‘morada após morada’, do seu ser egoísta e de sua atividade egocêntrica, e cria mais nele o ser-relação: relação de amizade, de gratuidade com Deus e os outros. Ser-com. Presença consciente e real, de acolhida e de doação.

Quando fala tanto de ‘conhecer a graça que Deus põe em nós’, a Santa se refere a essa novidade íntima que vai sendo gestada e que tem o poder de nos capacitar para uma nova relação: podemos viver de outro modo porque somos outra coisa melhor do que superficialmente descobrimos ser. ‘Pois como aproveitará e gastará com largueza quem não percebe que está rico?’ (V 10,6). Conhecer-se é reconhecer as ‘prendas’ que Deus nos dá do seu amor. E embora isso seja progressivo, chegando à plenitude ao final do processo, quando o ser novo irrompe com poder na consciência do homem, é bom levá-lo em conta desde o princípio da aventura da amizade com Deus. Isso tem uma importância pedagógica fundamental.

Diz Teresa aos principiantes: ‘Pois Deus lhe deu (à alma) tão grande dignidade que não se deve. forçá-la a ficar muito tempo num só aposento. ..; que a alma alce voo algumas vezes e considere a grandeza e majestade de Deus’ (1M 2,8). Grandeza e majestade de Deus em nós, fazendo-nos por inteiro dom, vivendo e agindo em nós, comunicando-nos o seu ser e deixando-nos partilhar dele.

Consequências? Entre outras, diz Teresa, a de que ‘o nosso intelecto e a nossa vontade se tornam mais nobres e mais aptos para todo bem” (Ibid., 10). Conhecer o que somos. E concretizá-lo para ser mais. O ser é ato e se faz concretizando-se.

Eduardo Rocha Quintella