santidade

Você sabia que os casados também podem ser santos?

Todos nós podemos ser santos?

Lembro-me do tempo em que, quem queria ser santo, tinha de ser padre ou freira. Não havia opção de santidade fora essa,  “vantagem das vantagens!”, e esse estado de vida era garantia quase total de céu. Era por volta de 1964 e eu conversava muito com a freira responsável pela livraria do meu colégio. Como não tinha dinheiro para comprar as revistas sobre a vida dos santos – e como ela estava interessada em me “fisgar” para ser “Lourdina” – permitia-se uma pequena infração: passava-me, disfarçadamente, uma vez por mês, uma revista em quadrinhos que contava a vida do santo do mês, desde que, comprometesse-me em ler sem amassar as folhas e devolver no dia seguinte.

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Foto ilustrativa: Ridofranz by Getty Images

Revista oculta no fichário, lá ia eu, com ar de inocente e me sentindo privilegiada, aprender o que (para a época) significava ser santo: sofrer, sofrer muito, muito mesmo e deixar tudo para seguir Jesus como padre ou freira. Não havia outra maneira de seguir Jesus. Tinha-se, sobretudo, que não casar. Os exemplos de pessoas casadas que haviam-se tornado santos, resumiam-se (que eu me recorde) a Santa Rita e Santa Beatriz, essas haviam sido casadas obrigadas pelos pais, porque elas desejavam a virgindade que, na época, era o sinônimo mais corrente para castidade e pureza.

Ora, essas duas santas tiveram de sofrer horrores, com seus maridos adúlteros, grosseiros, beberrões, incrédulos, blasfemos. Santa Rita vê morrer os dois únicos filhos e também o marido. Fica, assim, “livre” do que lhe estorva a vocação e consegue, através de um milagre, ingressar no convento, no qual, depois de muito sofrer torna-se santa.

Virgindade e castidade são iguais?

Esta mentalidade era alimentada por outro absurdo: a crença de que quem se casava, fazia-o por ser fraco demais, por não resistir aos apelos do sexo, por não ter têmpera bastante para o sacrifício e a renúncia da atividade sexual por amor a Deus. Era esta a interpretação que se dava a I Cor 7,8: “Aos solteiros e às viúvas digo-lhes que é melhor ficar como eu. Porém, se não podem conter-se, casem-se: e melhor casar do que abrasar-se”. Naquela época, como já disse, virgindade e castidade eram iguais. Só era casto quem era virgem. Quem era “fraco” e casava-se, não tinha como permanecer casto, uma vez que, o ato conjugal era sinônimo de falta de castidade e o amor humano era visto como um “roubo” ao amor exclusivo a Deus, um perigoso divisor de corações. A mediação humana do amor de Deus e a Deus não era nem considerada na época.

Segundo essa visão, aquele que permanecia virgem, vivia o sexto mandamento, e os casados o infringiam. Os virgens eram, portanto, superiores em santidade aos casados, eram mais perfeitos do ponto de vista moral, menos susceptíveis ao pecado, eram “puros”, esposos de Jesus e não de homens. A Ele amavam com amor superior, sem divisões, sem intermediações do amor humano.

Hoje em dia, para os mais esclarecidos, tal mentalidade parece piada. No entanto, escondido atrás de alguma porta, ainda se pode encontrar, 40 anos depois do Concílio e duas décadas após a “Familiaris Consortio”, quem pense assim ou traga, ainda, o ranço dessa visão que não corresponde, de forma nenhuma, ao que hoje pensa a Igreja.

Time da santidade X time dos fracos

Era desse jeito que eu pensava a cada mês, quando ia devolver minhas revistas não dobradas à freira da livraria, com o coração e a cabeça cheios de sonhos de heroísmo, martírio e santidade. Queria ser santa, ir para a África, continente para cujas missões meu grupo de “cruzadinhas” fazia sacrifício e angariava esmolas. Sonhava, de preferência, morrer por lá, cozida em algum caldeirão dos pigmeus incréus, porque sofrer longamente não era comigo. Meu coração adolescente preferia o heroísmo grandioso do que aquele escondido, de cada dia. O casamento afigurava-me como um mal necessário à preservação da espécie e que traz, inexoravelmente, grande sofrimento, após o qual, se tivesse sorte, ficaria livre para tornar-me freira e, assim, santa.

Você não imagina, assim, minha tremenda decepção quando, um belo dia, minha amiga freira, interessadíssima em minha vocação para lourdina, me disse, com clareza: “Maria Emmir, porque você não começa a rezar pelo rapaz com quem se casará?”. Horror! Frio na barriga! Decepção! Ainda na fila, havia sido recusada para uma vaga no time da santidade.

Era tímida demais para perguntar o porquê da recusa (sim, já fui tímida um dia!) e, convencida de que eu era uma cristã de segunda categoria, comecei a rezar, resignada, um terço por dia pelo rapaz com quem me casaria. Era amiga de Nossa Senhora e ia à Missa sempre que podia e, todos os domingos, mas havia enterrado meu sonho. Não tinha mais como ser santa, pois era destinada ao time dos fracos, dos que se casam, dos que são impuros, dos que não têm acesso aos altares.

A santidade é para todos

Foi com essa mentalidade que comecei minha amizade com o jovem Moysés, comendo resignada, as migalhas da mesa dos filhos, aquelas que sobram para os cachorrinhos. Uma vez que, ele e os que podiam ainda serem santos, abraçassem seu ideal e eu pularia fora. Teria cumprido minha missão de casada “impura”: ajudar os “puros”, os “virgens” a alcançar a santidade.

Quase cai para trás quando, ao delinear-se pouco a pouco à comunidade, ouvi do Moysés que haveria lugar para os casais, para as famílias, para os casados. Enlouqueci durante várias semanas ao ler, no que hoje chamamos “Escritos” que o amor esponsal era para todas as idades, para ambos os sexos, para todos os estados de vida e, também, para os casados.

Lembro-me de que, perguntei várias vezes ao Moysés, se ele tinha certeza do que dizia, se realmente, a oração profunda e o amor esponsal eram para todos. Estávamos, então, a vinte anos do Concílio Vaticano II e eu, com minha mentalidade pré-conciliar, ainda chocava-me em pensar que “os meninos do Shalom” poderiam namorar, até casar, e continuarem desejando a santidade. Sentia-me uma extraterrestre, com a terrível sensação de vir a estragar, com minha presença de casada, a obra que Deus queria fazer.

O pior é que, não faltavam homilias que reiterassem minha mentalidade tridentina, a ponto de, um dia, ter de retirar-me da Missa a tentar conter o choro, diante das acusações por minha leviandade em participar de uma comunidade. Dei trabalho ao Espírito Santo e ao Moysés que, tentavam me convencer do contrário: a santidade, a oração profunda, o amor esponsal eram para todos, absolutamente todos, inclusive os casados.

A diversidade de carismas e vocações

Hoje, plenamente convencida, sou alimentada pela exegese mais moderna de I Cor 7,7. O casamento é um carisma. O celibato é outro carisma: “desejaria que todos fossem como eu; só que cada um recebe de Deus o seu carisma, alguns este, e outros aquele”, diz a tradução mais atualizada. Sou iluminada pelo Magistério, que considera casto aquele que vive a virgindade consagrada, mas também aquele que vive o matrimônio segundo o Evangelho e a Igreja. Sou sustentada pela vocação que abre o amor esponsal a Jesus Cristo não somente aos celibatários, mas também, e em igual medida, aos casados.

Sou alimentada por São João da Cruz que define a santidade como vivência da caridade e unidade com a Trindade por participação no amor. Sou consolada pela amizade e partilha acerca da vida espiritual e do amor esponsal, com senhoras e senhores casados da parte de João da Cruz e de Teresa de Jesus. Sou surpreendentemente inspirada por Raniero Cantalamessa que, com base nos padres da Igreja, vê no ato conjugal e vivencia familiar, uma expressão da vida, de amor, e de seu constante e eterno movimento de kénosis e koinonia, de dar-se e acolher o outro, e assim, ser um com ele.

Hoje, suspiro aliviada ao ler os escritos de minha vocação sobre sermos, todos, almas esposas de Jesus e ao ouvir de santos vivos como Chiara Lubich que Deus virginiza pelo amor os que vivem castamente seu matrimônio e os que direcionam castamente sua vida para a caridade. Alegro-me com Teresa de Calcutá que, aponta o amor à família como meio incomparável de santificação, fazendo eco a João Paulo II que redefine santidade não como pureza moral ou impecabilidade, mas como ilimitada e sempre renovada confiança na misericórdia de Deus.

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Siga seu carisma!

Foi-se o tempo, graças a Deus, em que para ser santo era preciso, sobretudo, não casar-se. Hoje, lembro-me da pequena freira da livraria e, vejo nela uma profetiza, não só para o discernimento de minha vocação pessoal, como para toda uma geração de cristãos leigos, chamados a viver o sacerdócio comum do seu Batismo, independente de seu estado de vida. A essa irmãzinha, cujo nome não me lembro, vestida de bege, com uma longa faixa azul na cintura, filha de Nossa Senhora de Lourdes; devo muito mais do que posso expressar. Devo minha felicidade conjugal e o abraçar, profeticamente, a vocação que abriu a todos os estados de vida, rasgadamente, a oração profunda e o amor esponsal a nosso Senhor Jesus Cristo.

Sim! Foi-se o tempo em que casar significava renunciar, nada mais nada menos, a santidade. Podemos nos casar, se esse for nosso carisma e, abraçando nosso chamado, sermos santos pela misericórdia de Deus, pela vivência da caridade, da fé e da esperança, pela correspondência ao amor esponsal de Jesus Cristo, nascido em uma família humana. Foi-se o tempo, graças a Deus.

Emmir Nogueira