Santificação

Quais são os perigos e vitórias nas segundas moradas?

O caminho para as segundas moradas passa pela plena santificação de Deus

Nesta série de artigos “Caminho Espiritual e as Moradas”, estamos esquadrinhando, passo a passo e morada a morada, a peregrinação da alma rumo à união plena com Deus. Esse caminho, também conhecido como “santificação”, precisa ser construído em parceria e, à medida que Deus atrai a alma ou a estimula com suas graças, o ser humano deve corresponder com seu esforço pessoal de vencer vícios e fraquezas. O homem pode desimpedir, assim, o caminho para a plena ação de santificação de Deus em sua alma.

Seguindo as orientações de Santa Teresa de Jesus, em seu livro Castelo Interior ou Moradas e dos teólogos que teceram a teologia ascético-mística no século passado, já analisamos as primeiras moradas, a porta estreita para entrar nas segundas moradas e, no último artigo, como podemos avançar no desenvolvimento espiritual nelas. Aqui, veremos de forma didática, porque muitos cristãos ficam presos nas segundas moradas e não conseguem avançar no caminho espiritual.

Quais são os perigos e vitórias nas segundas moradas

Foto Ilustrativa: Kate_Koreneva by Getty Images

O semeador saiu a semear

A conhecida parábola do semeador, retratada com pequenas diferenças nos três evangelhos sinóticos (Mt 13,3; Mc 4,3; Lc 8,5), é a que melhor define os perigos que a alma enfrenta nas segundas moradas. Inicialmente, dois avisos dados por Jesus são importantes para a sua compreensão no caminho espiritual e deste momento que a alma vive nas segundas moradas:

Primeiro, como vimos nos artigos anteriores, esse momento na via iluminativa (segundas e terceiras moradas) é o período de contato íntimo com Jesus e de viver o seu discipulado, seguindo-o e imitando-o. Isso acontece na prática, através da grande manifestação do dom do entendimento ou inteligência, que revela verdades mais profundas, do dom de conselho que leva a segui-las e do dom de fortaleza, que dá forças para colocá-las em prática. Afinal, como compreender Jesus, que é a própria verdade, sem ele mesmo se autorrevelar? Como ter um perfeito entendimento espiritual das coisas, sendo iluminado pela luz do mundo, sem essa inteligência que vem do próprio Deus? Jesus deixa isso bem claro ao dizer que a todos fala em parábolas, mas somente aos discípulos, os que estão no “dia da verdade”, é permitido a explicação dessas parábolas. Assim, a compreensão da parábola do semeador só é dada aos discípulos (Lc 8,10 e Mc 4,11).

Depois, essa parábola trata-se de uma explicação do próprio caminho espiritual sob o discipulado de Jesus, e, por isso, ele é severo com os seus discípulos dizendo que, se não se compreende essa parábola, nunca se compreenderá as outras (Mc 4,13). Nessa passagem, o Cristo deixa claro que a não compreensão da parábola é um sintoma de que as Suas luzes não estão chegando até o discípulo e que, portanto, pode não estar havendo um verdadeiro desenvolvimento espiritual.

Isso acontece, porque Deus derrama suas graças constantemente sobre nós. Essa “graça atual” é um motor de partida para que possamos correspondê-la conscientemente. Se ainda se vive fora do estado de graça, é um convite constante à conversão. Se já conseguiu isentar-se do pecado mortal, essa graça atual nos incentiva a correspondê-la com nossos méritos, aumentando a graça santificante e, consequentemente, as virtudes infusas e os dons espirituais. Se não coloca obstáculos nessa dinâmica espiritual, a semente, que é a graça de Deus, cresce quase que “naturalmente”. Como Jesus bem lembra em outra passagem, a “semente” cresce sozinha sem necessária intervenção do homem (Mc 4,27-28), e assim pode se tornar uma planta tão grande que servirá de abrigo aos pássaros (Mt 13,32).

A parábola do semeador retrata, portanto, três situações na vida espiritual dos cristãos nas segundas moradas, que refletem um imenso perigo de travamento no progresso espiritual. Também refletem, com precisão, a vida daqueles que, embora generosos o suficiente para abandonar as coisas do mundo para seguir a Deus, embora fortes o suficiente para vencer os pecados mortais e as paixões, não conseguem seguir para além disso. No caso, a semente não encontra o terreno necessário e as disposições para seu crescimento.

Os pássaros do caminho

Como disse Santa Teresa, para a vida espiritual são necessárias a oração e a reflexão. Jesus promoveu isso nos seus discípulos, em primeiro lugar, afastando-os de suas ocupações imediatas. Como bem lembrado no artigo anterior, o conhecimento de Deus através da meditação de sua Palavra, requer tempo e cuidado. As segundas moradas são o momento de priorizar esses momentos de oração e reflexão. Não se pode fugir de suas obrigações familiares, sociais e de trabalho, mas é fundamental parar de consumir tanta informação desnecessária, tanto entretenimento vazio e inútil, tanto conhecimento das coisas do mundo. Numa linguagem bem atual, poderia dizer que não é necessário saber todas as notícias do mundo, acompanhar todas as séries e filmes da moda e ver, em tempo real, cada atualização de sua timeline.

Esse excesso de coisas inúteis fazem com que o terreno do nosso coração se torne uma estrada pisada pelos transeuntes. A inspiração que Deus nos dá, sua semente de graça, é tratada como mais uma “informação”. Mesmo com sua força intrínseca de crescimento, não existe possibilidade de penetração na alma, pois esta se encontra massacrada por “cultura” inútil. As grandes inspirações dadas por Deus, nas segundas moradas, como ler mais a Bíblia, retomar a oração diária do rosário, frequentar a Missa diária, manter uma frequência na Adoração ao Santíssimo Sacramento, terminam sendo “comidas” pelos amigos, familiares e meios de comunicação, que continuam gritando “deixa disso” como pássaros famintos e grasnadores.

É essencial, nessas moradas, promover um maior recolhimento da mente e da alma, e desenvolver a estudando e meditando. E, embora a maioria dos pássaros da nossa vida sejam o próprio mundo ao nosso redor, existe aqui uma grande intervenção dos demônios querendo roubar a palavra de Deus do nosso coração. Esse trabalho, de nos fazer estúpidos à Palavra de Deus, que era feito pelas nossas paixões nas primeiras moradas, são aqui assumido também por eles.

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Um campo extremamente rochoso

Se já se consegue filtrar a imensa quantidade de informação com que se é constantemente massacrado e priorizar a vida espiritual, o segundo desafio, nestas moradas, é fazer com que nosso coração deixe de ser duro e resistente à Palavra. De fato, a graça pode ser acolhida, começar um desenvolvimento e morrer. Aqui vale ressaltar a importância da perseverança na vida de oração e no estímulo ao amor a Deus.

Orígenes, no seu texto De Principiis, diz que nós não entendemos as Escrituras por causa da dureza de nosso coração. E como se manifesta essa dureza? Querendo separar, enquanto lemos, no que acreditar e no que não acreditar. Entendendo algumas coisas como “verdades” e outras deixando de lado com desculpas, que “não é mais assim”, “não foi bem isso que o autor quis dizer” ou “hoje não se vive mais isso”. Outro sintoma dessa dureza de nosso coração é que não conseguimos entender as contradições que existem na própria Palavra. Afinal, como é possível um Deus ser justo e misericordioso ao mesmo tempo? Como é possível elogiar Jacó, que roubou a primogenitura do seu irmão?

Tudo isso só pode ser revelado, segundo o próprio Orígenes, a partir de uma inteligência espiritual. Inteligência essa, podemos dizer, que só se desenvolve a partir dessas segundas moradas.

Como podemos acabar com a dureza de nosso coração? Hugo de São Vítor recomenda que cavemos com a enxada das compunções (Sermo XV). Ou seja, é o exame de nossos pecados e de como fomos infiéis a toda graça recebida, a consideração de todos os benefícios que ainda recebemos de Deus, constantemente, e dos bens futuros com que seremos agraciados, que faz com que nosso coração amoleça e seja terreno fértil para a graça. Somente assim poderemos remover as rochas da autossuficiência e orgulho, que não permitem à semente da graça desenvolver-se além de uma primeira e inconsistente germinação.

Onde os espinhos crescem

Em terceiro lugar, Jesus cita a semente que caiu num solo bom, mas que também possuía muitos espinhos. A semente nasce, tem capacidade de se desenvolver, mas é sufocada.

O cristão das segundas moradas, que consegue separar um tempo para a oração e o estudo, ou meditação; aquele que consegue encarar seus pecados veniais e buscar suas origens, querendo ser um perfeito discípulo do Cristo, faz com que a semente da graça ganhe terreno fértil para se desenvolver. No entanto, pode colocar tudo a perder cultivando também uma grande moita de espinhos no seu coração. A isso chamamos preocupação com as coisas do mundo.

Sugiro que você releia, com atenção e cuidado, os parágrafos do artigo anterior, que tratam do crescimento das virtudes teologais nessas moradas. Esse ver o mundo através da fé, essa confiança de que Deus tem o controle de tudo por meio da esperança, são duramente testados nessas segundas moradas. Na prática, tudo o que pode (e não pode) dar errado na vida, acontece nas segundas moradas. Os espinhos que crescem e exigem nossos cuidados na vida familiar, profissional e social se multiplicam rapidamente e, seria inocência se não víssemos nem registrássemos também, uma grande atuação dos demônios querendo desestabilizar esse crescimento espiritual.

A frase “quanto mais eu rezo, mais assombrações aparecem” é bem encaixada aqui. A dinâmica é simples: nas primeiras moradas, somos nossos próprios inimigos, pois ainda alimentamos as paixões que nos desestabilizam. Nas segundas, ainda atuamos contra nós mesmos enquanto alimentamos a inteligência e a memória com uma grande quantidade de informação que são inúteis para a vida espiritual (caminho pisado) e ainda perdemos o que conquistamos por qualquer distração (pássaros). Também somos nossos próprios inimigos ao cultivar, durante anos, uma dureza e insensibilidade às coisas de Deus no nosso coração (terreno rochoso).

Ao vencer essas etapas, duas coisas acontecem: a construção imperfeita que se fez da própria vida, até então, volta-se contra o construtor. Afinal, é impossível que o pecado, as paixões e a vida dissoluta que havia-se levado, tenha construído um “paraíso terrestre” à nossa volta. Os problemas começam a aparecer e exigir tempo e soluções. Depois, se até então tinha-se atuado como inocente serviçal do demônio, dando-lhe excelente lucro com pouco trabalho, ele resolve agora atuar com força para recuperar o que perdeu (Lc 11,26).

Os que não constroem as virtudes teologais são, inevitavelmente, engolidos pelos espinhos e, como diz a palavra citada acima, o estado final de sua alma será muito pior que o início. Pode-se listar várias desculpas dos cristãos que desistem neste estágio e rolam ribanceira abaixo: alguns foram sufocados pelos espinhos de uma promoção no trabalho que lhes deu mais dinheiro e menos tempo para se dedicar à própria alma, outros pelo espinho de uma doença (em si mesmo ou em alguém próximo), que lhes levou embora as forças de combater; outros ainda por decepções com Deus e com os outros, espinhos que sufocam a palavra e a graça.

Àqueles que conseguiram ouvir, ter um coração reto e bom para reter o que ouviram, e deram fruto pela perseverança (Lc 8,15), fica o convite para o próximo artigo e o início de um degrau acima na montanha: as terceiras moradas. Até lá! E que Deus abençoe abundantemente sua caminhada!