A vida do cristão começa no sacramento do batismo
Sendo bem exato, a vida mística de um cristão se inicia no batismo. Ao ser incorporado a Cristo por meio do sacramento, recebemos o Espírito de Deus e a capacidade de permanecermos unidos a Ele. Ao nos correspondermos a esta união, através da livre escolha e fidelidade à Sua vontade, quando vier a morte, isso converterá numa vida bem-aventurada no céu (CIC 1026). Como vimos nos artigos anteriores desta série “Caminho Espiritual e as Moradas”, Deus nos chama a viver integralmente essa união de amor, ainda nesta vida presente. A isso chamamos santidade.
Embora tenhamos essa capacidade para Deus desde o momento do nosso batismo, a vida espiritual, a espiritualidade, a graça santificante ou a vida interior precisam ser desenvolvidas pouco a pouco, de forma constante e progressiva. Isso não deve ser causa de espanto nem caracteriza uma contradição, basta pensarmos que, qualquer pessoa saudável tem condições de correr uma maratona. No entanto, quantos querem? Ou, dos que querem, quantos têm condições para terminá-la? Depois de querer, precisa preparar-se, treinar para conseguir chegar lá.
Por isso, a vida espiritual provocada por Deus, por meio dos sacramentos ou da graça atual, recebe inúmeras metáforas na Bíblia: é a pequena semente que precisa ser cultivada, é o pouco de fermento que pode levedar toda a massa, é o sal que dá sabor com sua pequena presença ou a luz que, mesmo pequena, ilumina todo o ambiente. Descrevemos, até aqui, o caminho que o cristão percorre retomando o controle de si mesmo, para que, aí sim, Deus possa agir e até levá-lo a viver a vida plena da graça. A este caminho ou via inicial, chama-se ascética.
Simplificando ao máximo, pode-se dizer que a vida ascética consiste em excluir de nossa vida conscientemente, e o mais completamente possível, tudo aquilo que é contrário à vontade de Deus e aquilo que, por ocupar nossa vida, nossa mente e nosso coração, nos impede de viver o amor a Deus com todas as nossas forças. A primeira parte, nas primeiras moradas; e a segunda, nas segundas e terceiras moradas.
A via unitiva
Já dissemos que, com as quartas moradas, inicia-se “oficialmente” a via unitiva. Sob a regência do Espírito Santo, Hugo de São Vítor chama esse novo dia espiritual de Dia do Amor.
Com o convite de conversão que o Pai fez, os esforços realizados no “dia do temor” para se viver completamente os mandamentos e o domínio das paixões aprende-se o amor servil. Amamos a Deus como servos obedientes e prestativos ao seu Senhor. Com o envio do Filho em Sua missão, no “dia da verdade”, liberta-se a inteligência e se ordena a vontade, enquanto se busca conformar-se, cada vez mais, a própria vida ao Cristo, Seu modo de ser e agir. Aprende-se, aqui, o amor filial, quem está verdadeiramente unido ao Cristo pode chamar Deus de Pai.
São Tomás de Aquino alerta, no entanto, que a missão do filho não é um aperfeiçoamento qualquer do intelecto, mas só acontece quando a inteligência é “instruída de tal modo que irrompe em afeição de amor” (ST I-Q43A05). A isso demos a devida atenção no artigo “Como progredir nas segundas moradas”, explicando a forma correta de meditação para chegarmos à oração afetiva, o terceiro grau de oração.
Podemos dizer, então, com São Tomás, que o dom de entendimento ou inteligência, vivido corretamente em união com o Cristo, provoca o aparecimento do dom de sabedoria ou “ciência saborosa”. O Filho, assim conhecido e percebido, “espira” o Amor. O Espírito Santo, então, procede (é enviado) temporalmente para santificar a criatura, inicia-se, assim, o dia do Amor.
Esse grande e extenso dia deve-se desenvolver até a completa união com Deus, por isso chamado de via unitiva, e desenvolve o amor esponsal. O amor entre esposos, a alma e Deus é, portanto, o terceiro e último grau do amor. Esse é aquele “dia que não terá fim” pois, mesmo no céu, continuaremos participando eternamente das núpcias do cordeiro e de Sua Igreja (nós), numa união de amor entre esposos. Pede-se por essa plena união na missa quando se reza: “fazei de nós um só corpo e um só espírito”.
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Via ascética
Na via ascética, aparentemente, o homem agia em busca da santificação, pois está ao alcance de cada um lutar contra os próprios defeitos e purificar-se das más tendências. Na via unitiva, ou mística, fica evidente que, não só a iniciativa, mas o desenvolvimento e a realização cabem a Deus. Sendo bem exatos, na via ascética também foi assim, mas existe uma aparência de que somos nós que estamos tomando a iniciativa quando, como em tudo que é da vida espiritual, na verdade só devemos corresponder e procurar não atrapalhar o que Deus realiza por si só em nós.
Se até as quartas moradas é preciso conhecer-se e crer para amar, a partir delas é o amor quem tudo conduz. Assim, agora será necessário amar para conhecer. Ou, em outras palavras, somente o Espírito Santo, que é o próprio amor, poderá revelar todas as coisas e promover essa união. Para tanto, a perfeita conformação com o Cristo precisa ocorrer, muito além do discipulado da via iluminativa, nas quartas e quintas moradas. As sextas moradas marcarão o “desposório espiritual”, quando Jesus mesmo virá se comprometer com a alma que será sua futura esposa, e na sétima morada, ocorrerá “matrimônio espiritual” quando essa união é finalmente consumada.
Nunca é demais lembrar que todos os cristãos são chamados a viver esse processo de santificação, e que as quartas moradas podem ser descritas como o patamar mínimo a que se deve chegar nesta vida presente. Acima disso, o Amor é a medida, pois quanto mais amarmos Deus, mais seremos por Ele possuídos e O possuiremos.
Não é um objetivo acima das nossas forças, pois a missão de Jesus, na Terra, consolidou-se com a criação da Igreja e o envio do Espírito Santo para a sustentar. Somos chamados a reproduzir esse processo em nossa vida interior, entregando-nos plenamente à ação e condução do Espírito Santo. Como vimos, isso só acontece a partir das quartas moradas quando as paixões já se encontram apaziguadas e o intelecto e a vontade são livres.
Essa nova lei dada por Cristo, também conhecida por lei da graça, é a lei que rege o novo reino estabelecido, o reino dos céus que já está sendo implantado na terra pela existência da Igreja. Por ser uma lei interior, somente um paráclito, um amigo, um consolador interior que pode nos explicar todas as coisas pode mantê-la viva e ativa em nós.
Nas inúmeras situações em que, nos Evangelhos, Jesus anuncia um reino próximo e que muitos, mesmo naquele tempo, não morreriam sem o ver, esse “reino dos céus” é a vivência das quartas moradas. É o início da via unitiva.
No próximo artigo, veremos com Santa Teresa de Jesus o evento que marca o início das quartas moradas no castelo interior da alma, e quais são os sinais e as vivências que se deve buscar nessas moradas. Que o Espírito Santo nos conduza a viver plenamente sob suas inspirações.