Paixão do Senhor

Sexta-feira Santa: Jesus vive Sua Paixão em liberdade e amor

No centro da liturgia da Sexta-feira Santa está a proclamação da Paixão do Senhor segundo o evangelista João. A Paixão, segundo João (Jo 18,1-19,42), apresenta a morte de Jesus na Cruz como a entronização do rei. No prefácio I da Paixão do Senhor, rezamos: “Na Paixão Redentora de Teu Filho renovas o universo e dás ao homem o verdadeiro significado de Tua glória; no misterioso poder da Cruz, julgas o mundo e fazes resplandecer o poder real de Cristo Crucificado” (Missal Romano, p. 325, edição italiana).

Nesta perspectiva gloriosa, a Cruz é adorada como o “Trono da graça”. A passagem da segunda leitura (Heb 4,14-16; 5,7-9) exorta: “Aproximemo-nos, pois, do trono da graça com plena confiança, para que possamos receber misericórdia e encontrar graça e ser ajudados no momento oportuno” (Heb 4,16).

O IV Canto do Servo do Senhor nos guia na compreensão dos elementos básicos do evento da Paixão e morte do Senhor. Antes de tudo, da experiência do protagonista emerge a primeira característica que encontramos em Jesus, a da justiça. Ele é um homem justo a quem é infligida uma sentença injusta (Is 52,8). Este é um primeiro traço indispensável para compreender o significado da Paixão de Jesus.

Ele é, como o Servo do Senhor, um homem justo que, por sua justiça, é condenado e tirado do caminho. Sua morte, portanto, não pode ser espiritualizada de forma alguma, não pode ser simplesmente aceita como vontade de Deus, pois é e continua sendo uma injustiça. É o destino dos justos na história da humanidade! (Cf. Sab 2, 12-14). A Paixão e a Morte de Jesus, como a do Servo do Senhor, é, portanto, antes de tudo, uma injustiça, enquanto que aquele que sofre este destino se apresenta como o Justo.

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Ele é sempre justo

Um segundo aspecto que podemos enfatizar é a forma de lidar com a situação injusta em que o Servo se encontra em um mundo no qual a injustiça se impõe como prepotência. O Servo do Senhor, como Jesus diante de Seus acusadores, não responde com os mesmos meios violentos. Ele é manso, como aqueles que as Bem-Aventuranças chamam de felizes (Mt 5,5). Do Servo, Isaías diz: “maltratado, ele se deixou humilhar e não abriu a boca” (Is 52,7). O homem injustamente condenado confia sua defesa a Deus e não assume os mesmos meios que seus acusadores, mas mesmo em injustiça ele permanece justo.

Outro elemento importante que emerge na forma como o Servo experimenta a situação em que se encontra, que já surgiu no Domingo de Ramos e na Quinta-feira Santa, é sua liberdade. Parece que em todos os acontecimentos narrados, o Servo é apenas uma vítima à mercê de seus inimigos. Na realidade, o que acontece é o resultado de sua livre escolha: “ele se despojou até a morte” (Is 53,12). O Servo não enfrenta os acontecimentos de sua vida com resignação e passividade, mas como um protagonista que mantém sua existência em suas mãos e não deixa que ela lhe seja tirada por aqueles que ameaçam sua vida. Este aspecto emerge muito claramente na narrativa da Paixão. Basta pensar no diálogo com Pilatos (Jo 18,28-38) ou na ação de confiar a Mãe Igreja ao discípulo amado (Jo 19,26).

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Ainda na linha de entender o caminho do Servo do Senhor para viver a Paixão e a Morte, podemos ver como o texto lê sua história como um presente de si mesmo para a vida dos outros. É uma ideia que volta insistentemente no texto: “Ele foi trespassado por nossos pecados, esmagado por nossas iniquidades” (Is 53,5; cf. também Is 53,10).

Podemos também projetar este aspecto sobre a história da Paixão de Jesus. Ele também não se apresenta como um herói, que morre unicamente por coerência com suas convicções. Se este fosse o caso, seus discípulos não seriam mais do que os defensores de uma causa. Jesus, de fato, vive Sua Paixão em liberdade, mas por amor aos Seus próprios. Esse aspecto já surgiu no episódio do Lava-pés, que se abre precisamente com a afirmação do amor de Jesus por Seus discípulos e pela humanidade até o fim (cf. Jo 13,1).

Fonte de vida eterna

É significativo que se diga do Servo, que a razão pela qual ele terá uma descendência reside no fato de ter oferecido sua vida. Também para Jesus, a morte que ele enfrenta por amor e em liberdade é uma fonte de vida. Pense no sangue e na água que correm do lado de Jesus que morreu na cruz: o próprio João interpreta esses elementos como uma fonte de vida (cf. 1Jo 5,6). Além disso, o quarto evangelista coloca o Dom do Espírito no preciso momento em que Jesus dá sua vida na cruz: “inclinando a cabeça, entregou o Espírito” (Jo 19,30).

O fato de João colocar o Dom do Espírito ao mesmo tempo em que Jesus dá sua vida na cruz cria um vínculo entre a doação de si e a prole, assim como o Servo do Senhor. No Evangelho de João, já encontramos este anúncio na imagem da semente de trigo que morre nos sulcos da terra para dar fruto (cf. Jo 12,24).

No início do hino, é dito que, na existência do Servo, testemunhamos um fato nunca dito (Is 52,15). Na existência de Jesus e em sua paixão e morte podemos contemplar este fato invisível: no rosto desfigurado do Servo do Senhor, o rosto do homem como Deus o sonhou e o pensou. É por isso que hoje também nós podemos nos aproximar do “Trono da graça” com plena confiança (2ª leitura), “para receber misericórdia e encontrar graça” (Heb 4,16). Hoje, a Paixão do Senhor continua em seu corpo, para que com Ele enterrado possamos nos erguer-ressuscitar com Ele.

Citações:
Is 52,13-53,12
Heb 4,14-16; 5,7-9
Jo 18:1-19:42

Dom Cristiano Sousa OSB Cam Mosteiro da Santa Cruz de Fonte Avellana, Itália