▶️ Assista

Nunca estamos sozinhos. O Senhor está ao nosso lado

“O enfermo respondeu-lhe: ‘Senhor, não tenho ninguém que me jogue na piscina quando a água é agitada; ao chegar, outro já desceu antes e mim’” (v. 7).

Essa expressão não deixa de ecoar constantemente na minha vida: “Senhor, não tenho ninguém”. É verdade que, na maioria das vezes, vivemos tempos inexplicáveis. Tempo de um individualismo “cáustico”, de relações pautadas por interesses e por meras conveniências, mas este homem, em 38 anos, afirmava que não tinha ninguém. Se ele fez ou não os esforços para chegar perto dos outros, eu não sei, mas é evidente que, por perto dele, não tinha alguém que o aproximasse da piscina ou mesmo que, como Jesus, lhe dirigisse a palavra.

Viver e morrer isolado é uma doença que se agudiza cada vez mais na nossa sociedade. Pessoas que não suportam os outros ou que, simplesmente, os outros não as suportam. No final dos anos 90, morei no Canadá e fui estudar francês; naquele belo e opulento país, deparei-me com o isolamento das pessoas. “Não quero ser incomodado por ninguém” era uma frase que eu comumente ouvia. Outra que me impactava era: “Hoje, o dia é para mim, não estou para ninguém”. Passou o tempo, e hoje estas não são frases que se ouça só em algumas ocasiões, mas que se transformaram em um hábito, em um costume. Não se trata de curtir a solidão, muito menos de degustar a clausura ou o silêncio, mas é simplesmente não querer ser incomodado por ninguém.

Senhor, não tenho ninguém

Vamos criando nossos “mundinhos”, fazendo com que sejamos só nós mesmos a curti-los. Não é um caso de adolescentes ou jovens rebeldes, mas é toda uma sociedade que, como aqueles que estavam na piscina, desfrutam seu mundo sem olhar ao seu redor.

Se Betesda fosse comparada a um hospital, diríamos que na figura deste homem se concentram algumas das áreas de pesquisa que teriam um verdadeiro cuidado intensivo.

Área do comodismo

Ficar no mesmo local por tempo indefinido. As horas e os dias se passaram na vida desta pessoa que não se moveu dali. Ele diz que fez o esforço, mas qual esforço? Segundo as suas capacidades ou segundo as suas comodidades? O comodismo é uma doença que alastra cada vez mais homens e mulheres. Pensar que tudo está bem e não tem nada a ser mudado. Este comodismo tem entrado na Igreja com aquela falta de criatividade que cresce cada vez mais. Não querer deixar o Espírito soprar onde Ele quer e como quer. O Papa Bento XVI o define, na encíclica Caritas in Veritate, no numeral 52, quando apresenta a verdade e o amor, que desvendam que nada nesta vida deve ser “produzido”, e sim acolhido como princípio e fonte da riqueza que estão inscritos no coração do homem.

 Área do egoísmo

A UTI mais frequente no nosso tempo. O primeiro que entrasse recebia a bênção da saúde. Por incrível que pareça, só o primeiro tinha direito a receber de forma individual a cura. Aqui está o foco mais forte dos nossos tempos: a pandemia, a vantagem. Tirar vantagem em tudo e ser o primeiro. Quando alguém afirma que entrou na licitação e ganhou o concurso, todos ficam meio desconfiados. O egoísmo leva muitos a destruir os outros. De fato, a relação fraterna se vê destruída pelos domínios e seguranças de quem chega primeiro.

Leia mais:
.: Amoris Laetitia: o que é?
.: Seis dicas para uma mudança de vida com fé e coragem
.: Como preservar a essência espiritual de uma pessoa? 
.:Significado da expressão “meu Senhor e meu Deus”

Área do favoritismo

Os padrinhos entram em ação. Quantos dependem dos outros, numa atitude negativa, para serem colocados dentro da água! “Não tenho ninguém”. Viver de favores, mesmo sem o critério ou a capacidade de alcançar o bem através da luta e do esforço. O escândalo da corrupção atinge a todos, mas nada mais corrupto que alcançar algo na vida só por ser o favorito de um grupo ou de uma porção.

 Área da frustração

Vamos nos deter aqui numa das virtudes teologais que maior exigência traz nos nossos dias: a virtude da esperança. Nesta oportunidade, gostaria de trazer o cardeal Robert Sarah, prefeito da congregação para o Culto Divino. Em 2015, ele foi entrevistado por Nicolas Diat, e desta entrevista surgiu a obra Dieu ou Rien, que significa “Deus ou nada”. Em um dos seus apartados lhe é perguntado: Como trazer de volta a esperança? A resposta pode nos ajudar imensamente para abordar o tema da frustração. Respondeu o cardeal: “A esperança não é nada mais do que o otimismo cristão. Este permite à pessoa ser sólida na sua fé, certa de que as promessas de Deus irão se cumprir. Na esperança, sei que o meu futuro deve ser sereno e estável.

Precisamente por isso, nós cristãos somos otimistas. Conhecemos nossas batalhas e sabemos que Deus não nos abandonará” (SARAH, R). Aqui se encontra o verdadeiro sentido da superação de toda  frustração humana. Sabemos das nossas batalhas e que, mesmo naquelas horas em que parece que tudo se encontra perdido, Deus está do nosso lado, junto a nós.

O doente de Betesda representa todos que ficam por mais de 38 anos esperando por algo impossível de acontecer, mas, mesmo assim, querem que alguém os empurre. As pessoas frustradas nunca mais se deram a oportunidade de reaprender o caminho pelos seus próprios meios.  No século do wi-fi, das comunicações via satélite,  das fibras magnéticas, ninguém espera uma hora. A margem de espera é de, no máximo, 15 minutos. Imagina quem espera 13.870 dias? Persistente ou perseverante? Nem um nem outro, simplesmente frustrado.

Individualismo

Vivemos dias muito difíceis! Tempo de exclusividade e individualismo. Vale o que tem mais, enquanto isso o pobre conta com a sorte e, quando muito, migalhas jogadas por pessoas inescrupulosas e irreverentes, sem compaixão nem sensibilidade. O tempo que este homem gastou ao lado do tanque de Betesda era demasiado. Falsas esperanças podem chegar a ser sacramentadas. Quantos presbíteros viram passar os anos de formação como algo necessário para alcançar a possibilidade que hoje a vida lhes oferece duma certa segurança? Quantos consagrados vivem nas suas redomas da vida religiosa seguros de tudo? Quantos casamentos falidos desde o primeiro dia em que decidiram namorar?

Uma das maiores perdas de sentido, uma realidade antropológica falida vocacionalmente, uma resposta sem eco, sem valor, sem capacidade para permanecer com Ele na hora das provas. O jesuíta Luigi M. Rulla afirma ao longo dos seus estudos: “Para muitos, a arte de esperar se transforma na pressão de saber suportar, para assim comprazer os seus expectadores” (RULLA, L. M; La Antropologia de la vocación Cristiana).

Olhando para as atitudes deste doente, podemos pensar que, se ele sabia que ninguém o colocaria naquela água, por que a insistência em permanecer ali? Ele poderia ter pedido para alguém que o tirasse daquele lugar, mas não o fez. No mundo em que nos encontramos, vamos criando a necessidade de nos sentirmos donos do nosso pedaço, da nossa redoma, e quando ali nos instalamos, perdemos aquilo que eu chamo de horizonte alargado. Acontece em todas as etapas da vida cristã. Pessoas que, muito mais do que desmotivadas, se encontram sepultadas no mesmo lugar e não encontram outro caminho.Na exortação pós-sinodal Amoris Laetitia, o Papa Francisco, ao tratar da espera, inicia afirmando que o amor não desespera, indica a esperança de quem sabe que o outro pode mudar e sempre espera que seja possível um amadurecimento, um “inesperado surto de beleza” (FRANCISCO, A. L., 116).

Somos cientes de que nem tudo na vida muda da noite para o dia, mas quando esperamos no Senhor, as mudanças se tornam visíveis, e aqui é onde a pergunta de Jesus se torna inesperada. Até aquele dia, muitos sabiam que há muito tempo ele esperava, mas só Jesus aproximou-se para lhe perguntar: “Queres ficar curado?”.

Trecho extraído do livro “Senhor, não tenho ninguém”, do padre Rafael Solano

Assista ao vídeo do Padre Rafael Solano sobre o livro:


Padre Rafael Solano

Sacerdote da arquidiocese de Londrina (PR). Mestre e doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e pós-doutorado em Teologia Moral e Familiar pelo Pontifício Instituto João Paulo II de Roma, Universidade Lateranense de Roma. Atua como consultor da CNBB setor vida e família e como professor de Teologia Moral e Bioética na PUC (PR), Campus Londrina. Autor de livros publicados pela Editora Canção Nova.