O chato no leprosário

Eu fazia parte de um grupo de jovens que sempre se envolvia nas mais engajadas das causas. Como éramos todos “promissores em alguma coisa”, éramos muito arrogantes e intelectualizados.

Tínhamos grupos de discussão social e de conjecturas políticas. Éramos ligados a freis franciscanos e ficamos meio “franciscanistas falsificados”. Desejávamos a vida interior de São Francisco de Assis com a vida exterior do Donald Trump, inclusive suas mulheres.

Os freis tinham uma enorme paciência conosco e nunca deixavam de nos ensinar os caminhos mais exatos na vida espiritual. E mesmo sem maturidade, lá estávamos nós, prontos para qualquer discussão: para salvar as baleias, o boto da Amazônia e quem sabe o mundo inteiro… desde que não tomasse muito tempo, não atrapalhasse os nossos namoros e nem custasse caro.

Mais como tudo tem um porém, neste grupo habitava e participava ativamente um Chato Profissional (repare nas maiúsculas) – “Chato Profissional”.

Vestido em suas indefectíveis calças de tergal azul marinho, com a testa sempre gordurosa, gostava de cumprimentar beliscando e/ou cutucando. Tinha umas quatro mil composições inéditas e sempre sabia a formação do “Quinze de Piracicaba” (time de futebol) de cor, mesmo morando no Rio de Janeiro.

Era o tipo de cara que sempre entrava em lojas de R$1,99 para olhar tudo e, no final, comprava uma lanterninha e perguntava quanto tempo tinha de garantia.

Quando estávamos reunidos numa roda de amigos e este Chato chegava, todos íamos embora. Arranjávamos os compromissos mais urgentes na última hora e fugíamos dele. Ninguém tolerava aquele cara.

Mas… um dia estávamos reunidos, combinando uma ida ao leprosário, num bairro da cidade do Rio de Janeiro. Não conseguíamos sair há tempo. O chato chegou, logo foi se enturmando, sabendo dos planos e dos horários. Neste dia não houve fuga.

No dia da ida ao leprosário eu estava muito triste. Havia vivido uma situação muito difícil em casa com uma separação inesperada. Minha irmã havia me dado uma notícia que, caiu sobre a minha cabeça como uma bomba atômica. Meu peito estava dilacerado.

E para completar, quando foi na hora de entrar no ônibus que nos levaria, o terror se apoderou de mim! O chato foi se aproximando, cantando uma música bem conhecida e de repente… Sentou-se do meu lado e foi fazendo suas gracinhas durante toda a viagem. Virei piada da turma. Eram meus colegas que haviam preparado essa para mim.

Em meu coração, já entristecido, nasceu um ódio, uma ira e uma tremenda repulsa por aquela situação. Eu queria sumir do mapa e, se possível, para bem longe daquele lugar, daquela situação e daquele chato.

Quando cheguei ao leprosário, só me restava a pretensão da caridade que ia fazer ao visitar os mais necessitados – afinal de contas, éramos os jovens mais promissores do mundo e cheios de vida.

Éramos bons demais para nós mesmos, isso sim. Até a caridade era uma maneira de mostrarmos ao nosso ego que, bem lá no fundo dos nossos corações era massageado pela bondade que saía de nós.

Quero deixar bem claro que não estou criticando as iniciativas semelhantes a essa. Mas quero enfatizar que eu não tinha caráter e nem entendimento do que fazia. Na minha imaturidade, meu coração não estava ali.

Um homem bem alimentado, dificilmente acredita que um outro está com fome.
(Provérbio Africano)

Cheio de orgulho e vaidade, munido de meu violão, desci do ônibus e comecei a me relacionar com os mais necessitados o mais rápido possível. Por três motivos:

– EU era “o bom;”
– EU precisava me livrar do chato;
– EU, diante do MEU sofrimento, fiz o que muitos fazem: fui ME consolar vendo pessoas que estavam mais sofridas do que EU. Ou seja, nivelar por baixo para que EU ficasse por cima.

E qual não foi a minha surpresa?! Enquanto fazia o meu “showzinho” com músicas cheias de mensagens e afastamentos; enquanto meus amigos ficavam de um lado da mesa, entregando roupas e comidas para os “leprosos” que estavam do outro lado da mesa; enquanto fazíamos “caridade em causa própria”, o chato se revelou.

Ele sentava no chão, brincava com as crianças, dava risada, se divertia com os mais jovens, se alegrava com cada aperto de mão. Abraçava todo mundo… mesmo no leprosário (por aí você vê que eu também era movido por um terrível preconceito, tipicamente ignorante).

E, com muita humildade e simplicidade, o jovem chato pegou um cortador de unhas e começou a cortar as unhas do pé de um velhinho leproso que estava precisando daquele carinho e daquela medida higiênica.

Você já viu alguém cortar as unhas do pé de um velhinho leproso com todo o amor que podia ter e dar?

Estou cada vez mais convencido de que a felicidade vem não pela quantidade de amor que recebo, mas pela quantidade de amor que sou capaz de dar.
(Ricardo Sá)

Aquele rapaz tão criticado, tão humilhado, nos fez rever todas as intenções dos nossos corações e o que era vencer as barreiras em nome do amor. Nele, vimos a verdadeira caridade.

Acabei me tornando amigo daquele rapaz tão criticado.
Dia-a-dia, o coloquei em minha rotina, convivendo e descobrindo que ele era um homem de vida interior, profundo e me mostrou a diferença entre a inteligência e a sabedoria.

Ele havia perdido a mãe muito cedo e seu pai o criou sozinho.

Ele era tão amado por seu pai que, como ninguém, amava a todos. Ele nos amava, mesmo achando que éramos muito superficiais e imaturos.

Ele também nos achava chatos! Tinha razão… só que ele nos acolheu primeiro. Nos amou primeiro…

Ele deu o primeiro passo.

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor… ”
(Carta de Paulo de Tarso aos Coríntios, cap.13)

Decida-se pelo amor.