Decodificando Dan Brown

Se você quer aprender algo sobre Cristianismo ou Judaísmo, tenha certeza de que não tem nada secreto envolvido, e a verdade é muito mais interessante e autenticamente inspiradora do que qualquer fantasia.

Decodificando Da Vinci é o livro de Amy Welborn (Ed. Cultrix, 2004, 136 pág.), em que a autora disseca todas as bobagens, crendices e erros intencionais e não intencionais acerca do Cristianismo e suas origens, tais como o apresenta o famoso livro de Dan Brown.A historiadora consegue dar ao seu livro um ritmo e uma narrativa ainda mais empolgantes que a obra que examina, mas o principal motivo para lê-lo é informar-se sobre a verdade histórica, já que se trata de um sério estudo amparado em rica bibliografia, em contraposição à “inocente ficção” que critica.

Aliás, este é um ponto que a autora se propõe desmistificar logo no início, a de que “não passa de mais uma obra do popular gênero de ficção histórica e, portanto, para quê tanto barulho?” O motivo o próprio Brown nos dá na apresentação de seu “inofensivo romance”, ao declarar: “Todas as descrições de obras de arte, arquitetura, documentos e rituais secretos neste romance são exatos”, declaração que Welborn tem a paciência de provar em grande parte ser falsa, e também pelo fato de que ele tem afirmado em entrevistas e no seu site estar satisfeito por dividir essas descobertas com os leitores, porque quer participar da narração da “história perdida”.

A obra de Brown não é de ficção histórica, gênero no qual, ao mesmo tempo que um romance trata de personagens fictícias envolvidas em atividades imaginárias, a estrutura histórica fundamental é correta. Com o Código Da Vinci o autor tenta o contrário: pretende ensinar história, ou pelo menos um relato histórico que deve também ser levado em conta ao lado de “outros”, dentro da estrutura da ficção. Para Brown, invertendo maliciosamente a fórmula do gênero literário, a ficção é o pano de fundo da história que ele conta e que pretende fazer passar por séria pesquisa, com o efeito de cruzar a todo instante a linha entre ficção óbvia e o fato possível. Mas é claro que Brown não está só nessa cruzada: ao lado de muitos outros interessados em combater o Cristianismo, a série Re-escrevendo a História do Discovery Channel tem veiculado as mesmas teorias conspiratórias acerca da “batalha” entre os “partidos” de Pedro e de Maria Madalena pelo “poder” nas origens do Cristianismo, com toda essa baboseira acerca do segredo do Santo Graal, sagrado feminino, Jesus como um cara gente boa, etc.

Ainda a corroborar a tese de que sim, trata-se da intenção de Brown de extrapolar seu “livro inofensivo”, some-se o fato de o principal personagem do romance, um professor de Harvard de uma matéria que nem existe, merecer o seguinte comentário do próprio autor, na introdução a um livro seu anterior: “[Este] foi o livro em que dei vida ao personagem de Langdon e me entreguei com prazer à sua paixão (…) pela área nebulosa entre o bem e o mal”. Ao examinar-se essas obras de Brown, não fica claro se apenas seu personagem ou se o próprio autor também sofre dessa nebulosidade mental e moral, mas o fato é que quer transmiti-la a seus leitores mais desatentos. Ou pelo menos os que já apresentam tal predisposição acabarão a leitura ainda mais certos acerca da incerteza. Brown é efeito mas também tenta ser causa do relativismo reinante em nossa “cultura do consenso”, onde tudo não passa de questão de opinião e não existe verdade. (“Não existe verdade!”; pense bem nessa asserção e veja se não é de uma inconsistência lógica gritante; mas veja também se não é exatamente isso que está à sua volta).

Não tenho a intenção nem a competência de roubar um só leitor do livro de Welborn, nem tampouco de reduzi-lo a uma simples crítica, ainda que fundamentada e séria, do best-seller. É certa a referência constante à obra de Brown, mas a autora a usa também como plataforma, mesmo para quem não tenha lido o Código Da Vinci, para nos reportar aos aspectos e dramas cruciais das origens do Cristianismo, já que este é o tema, com todo o rigor que a ciência histórica nos pode fornecer. Welborn desmascara uma a uma as falácias, meias-verdades e mentiras-e-meia, pretensamente “históricas”, da nebulosa concepção que as personagens de Brown têm, e que ele quer compartilhar com o leitor, acerca do Cristianismo como um todo e de suas origens em particular.

Desmascara inclusive uma questão de ordem lógica entre a pretensa versão histórica apresentada por Brown e alguns fatos aceitos por todos e inclusive por ele, numa aposta descuidada de que seus leitores não perceberiam a incoerência interna da obra. Sem querer antecipar o que será lido, remeto-os ao livro de Welborn. Pretendo somente comentar de que forma insidiosa age a obra de Brown sobre as pessoas e um dos motivos de sua grande aceitação, não como um suspense intrigante, mas como fonte confiável, ou pelo menos discutível, de revisão histórica.

À semelhança de O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, toda a trama dessas duas obras de Brown gira em torno de segredos: sociedades secretas, conhecimento secreto, documentos secretos e até segredos de família. Maçonaria, Rosa-Cruz, Templários, Priorado de Sião, Hospitalários, Illuminati, Opus Dei, e muitas outras sociedades, secretas ou nem tanto, reais ou imaginárias, são figuras constantes neste tipo de literatura, tendo muitas vezes seus sentidos de existência alterados ou até completamente invertidos pelo autor. O autor nos reporta, com muita competência, para esse clima de mistério, onde nada é o que parece ser, onde cada obra de arte, escrito científico ou simples conversa de comadre é na verdade o oposto do visível e carrega em si mensagens cifradas a que somente os entendidos terão acesso. É claro que as Escrituras fazem parte do mesmo esquema secreto: não podem ser lidas pelo seu significado visível, sendo este tão-somente um ardil judaico-cristão de dominação política e uma ficção divulgada para controlar o mundo; apenas seu significado oculto é a “verdade” que o mundo tanto anseia para finalmente se libertar. Alguma semelhança com doutrinas correntemente ensinadas?

Desfilam então ao longo das obras figuras históricas como imperadores romanos, Da Vinci, Newton, Galileu, Botticcelli, Papas e cardeais, industriais e políticos, alguns levando adiante e outros tentando desesperadamente eliminar os códigos ocultos, mas todos conscientes do que se passa. Os segredos são tão grandes e fantásticos, afetam tanto todos os aspectos da vida, que o leitor começa a desconfiar se alguns personagens históricos fizeram mesmo parte de seitas secretas, ou se até o próprio leitor não faz parte, sem saber, de alguma conspiração?! Consciente de que desperta essa impressão no leitor, Brown, em Anjos e Demônios, descreve um diálogo em que um dos personagens fictícios ouve incrédulo um relato fantástico desses, ao que seu interlocutor retruca, acalmando-o com a notícia de que muita besteira e mentira se tem publicado acerca do assunto; e é justo nesse ponto que Brown fala, em tom de “olha a que absurdo chegam esses relatos”, acerca de uma pessoa que sabidamente teve participação em seitas gnósticas: Karl Marx, rei do relativismo materialista. (M. Antelman, To Eliminate the Opiate, e referências citadas).

Não sei se Brown ou Eco fazem parte de alguma sociedade gnóstica, nem me interessa muito saber desse “segredinho”, mas o fato é que esse tipo de literatura atinge dois efeitos que dificilmente não contam com a intenção de seus autores: é uma arma contra o pensamento ocidental judaico-cristão e desperta o interesse por pensamentos gnósticos que envolvem, por natureza, segredos. E que forma melhor de espalhar pensamentos que no seu todo devem permanecer secretos, mas ao mesmo tempo cultivar sua procura? Desperta a curiosidade por conhecimentos secretos ao mesmo tempo em que os mantém ocultos por uma áura de probabilidade remota. Não obstante, esses dois efeitos somente são atingidos porque o lado combatido não tem sabido transmitir com eficácia seus reais valores e conhecimentos, tornando-se presa fácil para ataques.

O pensamento gnóstico, ao mesmo tempo que assume diferentes formas em diferentes lugares e épocas, abrange alguns temas constantes: a fonte da bondade, da vida autêntica, é espiritual; o mundo material é mau; a situação angustiante da humanidade resulta do aprisionamento da alma espiritual no corpo material; a salvação ou libertação do espírito é alcançada ao se adquirir o conhecimento (gnosis = conhecimento); somente uns poucos são dignos de receber esse conhecimento. Esse pensamento é primo-irmão das religiões dos mistérios praticadas nos séculos III ao V, que enfatizavam a salvação pessoal, a iluminação e a vida eterna por intermédio da união com o divino em atividades secretas de culto através da encenação de eventos míticos. Os gnósticos procuraram imiscuir seu pensamento com o Cristianismo, mas foram rejeitados por negarem a humanidade de Jesus Cristo tal como era relatada pelos Evangelhos, ao considerarem-nO somente como o Senhor e não como tendo natureza humana também. (A tese de Dan Brown é justamente a oposta, a de que os primeiros cristãos não viam Jesus como Deus mas apenas como um “bom camarada”, apesar dos escritos por ele apresentados serem de fonte gnóstica; até isso ele torce!).

Na verdade e infelizmente o erro do gnosticismo sempre existirá, e crescerá à medida que formos incapazes de transmitir corretamente a diferença entre Mistérios de religião e segredos de confraria. O ser humano, pela própria natureza que o constitui, é um ser que tenta entender e se relacionar com Deus, mas é também essa mesma natureza que o limita nessa busca. Por mais que nos esforcemos, essa busca sempre será limitada por nossa condição de finitude temporal, espacial, material e racional. Até a vontade empregada na busca é finita. Sempre existirá algo que nos escapará: de quanto o infinito transcende o finito? Não podemos fazer de conta que não existe, mas também sabemos que nunca chegaremos lá. E é aqui que mora o Mistério, que nada tem a ver com segredos, em princípio cognoscíveis por alguns, que podem ser passados adiante através de sociedades e rituais. Eu mesmo fui vítima da confusão entre Mistério e segredo, pendendo entretanto durante muito tempo para o erro oposto, o agnosticismo: é impossível alcançar o infinito, mas achava igualmente impossível ter qualquer conhecimento finito sobre ele.

Se você quer aprender algo sobre Cristianismo ou Judaísmo, você sabe onde e em que livro procurar e, tenha certeza de que não tem nada secreto envolvido: descobrirá, como diz Welborn, que a verdade é muito mais interessante e autenticamente inspiradora do que qualquer das fantasias. Mas é óbvio que alguém chegado a segredos passará boas horas procurando relações numerológicas neste artigo ou no livro de Welborn, para enfim provar que nós também compartilhamos de conhecimentos secretos cifrados, e que o que é, não parece ser. Ou talvez o contrário, sei lá.