Liberdade

Livres e fiéis em Cristo

Deus nos criou com o dom maravilhoso e desafiador que é a liberdade

Deus se arrisca a encontrar inclusive respostas negativas ao seu projeto de amor e felicidade para a humanidade. Seu contato com a humanidade, expresso em toda a História da Salvação, inclui um elemento importante, o chamado, apelo, a vocação. A aventura humana pede este confronto de duas liberdades, que podem construir, ao longo dos anos, fecundo relacionamento, cujos frutos contribuem para o crescimento do Reino de Deus, sem excluir as possíveis crises de amadurecimento, já que somos respeitados nos passos a serem dados.

Livres e fiéis em Cristo
Foto: Daniel Mafra/cancaonova.com 

Um homem de nome Amós, vindo do ambiente rural (Am 7, 12-15), cuja experiência é descrita pela Liturgia neste final de semana, é convocado por Deus, para exercer a missão de profeta, com palavras provocadoras e exigentes, em tempos de crise política e religiosa. Deus chama quem ele quer e do jeito que quer, desenraizando, quando necessário, a pessoa do próprio ambiente, concedendo-lhe palavras acertadas que suscitam mudança e conversão. A resposta ao chamado poderia ser negativa, mas a hombridade do homem simples e corajoso pede um compromisso corajoso. Não dá para voltar atrás!

Jesus chamou doze (Mc 6, 7- 13), setenta e dois, centenas e milhares para o seguirem e serem enviados. Houve gente que disse não (Cf. Mc 10, 17-22), entre os que o seguiram houve deserções, traição, negação vergonhosa, pecados! A todos ele faz propostas semelhantes e desproporcionais às capacidades humanas: não levar nada para o caminho, despojamento total, expulsar demônios, curar os enfermos, anunciar a chegada do Reino de Deus. Até hoje é assim, nos diversos dons, ministérios e carismas que são concedidos a todo o povo de Deus. Existe o chamado e as pessoas continuam respondendo, mesmo em meio a tantas mudanças no mundo. E quem o segue deve acolher condições exigentes: “Entrai pela porta estreita! Pois larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram! Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos são os que o encontram” (Mt 7, 13-14). O que acontece? Por que este “incômodo” que é seguir Jesus continua a se realizar, malgrado toda uma onda que aparentemente conduz a estradas diversas?

É claro que nosso ângulo de visão é fruto de nossa fé. Estamos convencidos de algumas realidades fundamentais! Fomos feitos por Deus, não somos obra do acaso, por ele somos amados e o mundo não é o espaço dominado pela maldade, mas terra de Deus, pensada por ele para a nossa felicidade, tanto que a Bíblia descreve poeticamente a Criação, falando de um Paraíso! Num mundo de pessoas que apenas pensam em vestir-se bem, outras querem a ociosidade, tantas rejeitam a verdade ou querem criticar todas as coisas, há gente que prefere os valores do Paraíso e o preferem, como santos do porte de um São Filipe Neri, sobre o qual é muito conhecido um filme chamado “Prefiro o Paraíso”.

Renunciam a grandes carreiras, homenagens, sucesso a qualquer custo. Agrada-lhes outra coisa, o Paraíso! É que o projeto de Deus contempla valores diferentes dos que costumeiramente encontramos como a partilha, a sensibilidade diante das situações dolorosas dos outros, a atenção, a coragem para tomar iniciativas de serviço à sociedade, a superação da impureza e da ganância. Trata-se de preferir o Paraíso, o jeito de Deus ver as coisas!

O Apóstolo São Paulo usa expressões que podem abrir os horizontes de nossa compreensão da realidade humana e dos desígnios de Deus para todos: “Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, para sermos santos e imaculados diante dele, no amor. Conforme o desígnio benevolente de sua vontade, ele nos predestinou à adoção como filhos, por obra de Jesus Cristo, para o louvor de sua graça gloriosa, com que nos agraciou no seu bem-amado” (Ef 1, 4-6). Nós fomos escolhidos, antes do mundo ser criado, para sermos santos e imaculados, diante dele, no amor. Ninguém foi feito para o egoísmo ou para o pecado. Optar pela maldade é possível, mas é processo de autodestruição, e Deus não fez ninguém para ser infeliz!

Aqui tocamos num ponto delicado. Há um destino traçado, do qual não podemos fugir? Será que não posso escolher jogar tudo para o alto, considerando-me livre para fazer o que quiser? Só posso ser feliz em Deus? São perguntas desafiadoras e incômodas! Só Deus é capaz de propor aos seres humanos um caminho de felicidade e continuar a amá-los, se manipular sua liberdade, mesmo se eventualmente voltarem as costas para ele. Só o Pai do Céu é capaz de enviar seu Filho amado, que foi até o mais profundo da rejeição de Deus, quando, em nome da humanidade arrasada, gritou na Cruz o abandono: “Quando chegou o meio-dia, uma escuridão cobriu toda a terra até às três horas da tarde. Às três da tarde, Jesus gritou com voz forte: “Eloí, Eloí, lemá sabactâni? – que quer dizer “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste” (Mc 15, 33-34). Tendo descido por amor ao ponto mais baixo, Jesus Cristo nos abriu o caminho da vida e da liberdade, visitando todas as situações humanas, para preenchê-las apenas de amor.

Nesta “viagem”, com a qual conheceu tudo o que é humano, concedeu capacidades às pessoas, chamou, convocou, atraiu e enviou: “A cada um de nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo. Por isso, diz a Escritura: ‘Subindo às alturas, levou cativo o cativeiro e distribuiu dons aos seres humanos’. Que significa ‘subiu’, senão que ele desceu também às profundezas da terra? Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus, a fim de encher o universo” (Ef 4, 7-10). Para resgatar o escravo, fazendo-o livre e fiel, ele se fez escravo, entregou-se até à morte, e morte de Cruz!

O caminho da liberdade passa pela entrega. Só se liberta quem se doa, quem transforma sua vida em oferta a Deus e ao próximo! Quem se guarda condena a si mesmo à esterilidade e à tristeza, e este não é o plano de Deus! O dom da liberdade se efetiva quando as pessoas saem de si mesmas. Pode acontecer que alguém até esteja preso, como ocorreu e ocorre com tantos homens e mulheres que se sacrificam por Deus e pelo próximo, mas estas são pessoas livres, porque são fiéis a Cristo. Acima das eventuais circunstâncias, “pela fé, conquistaram reinos, exerceram a justiça, foram contemplados com promessas, amordaçaram a boca dos leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, recobraram saúde na doença, mostraram-se valentes na guerra, repeliram os exércitos estrangeiros. Mulheres reencontraram os seus mortos pela ressurreição. Outros foram torturados ou recusaram ser resgatados, para chegar a uma ressurreição melhor.

Outros ainda sofreram a provação dos escárnios, experimentaram o açoite, as cadeias, as prisões, foram apedrejados, serrados ou passados ao fio da espada, levaram vida errante, vestidos com pele de carneiro ou pelos de cabra, oprimidos, atribulados, sofrendo privações. Eles, dos quais o mundo não era digno” (Hb 11, 33-38). Que Deus continue a chamar, em nosso meio, pessoas desse quilate!


Dom Alberto Taveira Corrêa

Dom Alberto Taveira foi Reitor do Seminário Provincial Coração Eucarístico de Jesus em Belo Horizonte. Na Arquidiocese de Belo Horizonte foi ainda vigário Episcopal para a Pastoral e Professor de Liturgia na PUC-MG. Em Brasília, assumiu a coordenação do Vicariato Sul da Arquidiocese, além das diversas atividades de Bispo Auxiliar, entre outras. No dia 30 de dezembro de 2009, foi nomeado Arcebispo da Arquidiocese de Belém – PA.