EMPATIA

Edith Stein: Desapego dos próprios projetos para servir os irmãos

Responsabilidade perante a história

Em janeiro de 1915, Edith Stein faz o seu exame de estado “pro facultate docendi” e é aprovada. Com esse título ela já poderia aulas de germanística (alemão, literatura, latim) e história no ensino médio superior. Mas o seu objetivo sempre foi, desde o início, seguir com os estudos e defender uma tese doutoral para poder lecionar em uma universidade – quando a lei permitisse que esse tipo de cargo fosse exercido por mulheres. Edith sonhava com isso e acreditava que a ampliação dos direitos das mulheres era uma questão de tempo.

Ela estava bem envolvida nos movimentos políticos pelo direito de voto das mulheres na Alemanha, as chamadas “sufragistas”, que atingiram seu objetivo em 1918. Sabia que se este direito fosse adquirido, outros também poderiam ser pleiteados. Edith compreendia todas essas atividades como fazendo parte de sua responsabilidade perante a história de sua nação. Não as desvinculava de sua vida intelectual, mas as integrava e se dedicava a pensar sobre elas. Suas obras futuras, tais como ‘Indivíduo e comunidade’ e ‘Uma investigação sobre o Estado’ mostrarão isso.

Início da guerra e do voluntariado

Explode a 1ª Guerra Mundial, a Alemanha declara guerra à Rússia e à França. Ao saber que a Alemanha havia entrado na guerra, Edith posterga os seus estudos e a redação de sua tese de doutorado e faz um alistamento voluntário na Cruz Vermelha. Vários de seus colegas fenomenólogos também se alistaram voluntariamente, inclusive Adolf Reinach e os filhos do Husserl, pois a Fenomenologia não era apenas uma nova teoria filosófica, mas ela trazia consigo a necessidade de uma postura coerente e responsável perante si mesmo, perante os outros e o mundo.

Revolta com a negação da guerra

A família da Edith, especialmente sua mãe, que sempre a apoiava em tudo, não compreendeu e tampouco aceitou a ida da Edith para o Front. Ainda mais agora, que ela já tinha passado no exame de estado e poderia ficar na Breslávia, lecionando em sua antiga escola. Realizaria o seu sonho de ser professora, voltaria para morar com os seus familiares, sem ter grandes despesas, e estaria sã e salva. Mas esse não era o sonho de Edith.

Edith Stein Desapego dos próprios projetos para servir os irmãos

Reinach na guerra/cancaonova.com

Ela relata em seus escritos autobiográficos o quanto se indignou quando chegou na casa de sua mãe, retornando de Gotinga, e a viu com suas tias e algumas amigas tomando chá e comendo biscoitos, indiferentes aos eventos da atualidade. Ninguém comentava da guerra, que para ela era a coisa mais importante que estava acontecendo:

Encontrava-me num estado de tensão febril, encarando de frente, com grande lucidez e determinação, o que me aguardava. “Agora minha vida já não me pertence” – disse para mim mesma. “Tenho de investir todas as minhas forças nisso que está acontecendo. Quando a guerra terminar, se ainda estiver viva, poderei voltar a pensar em meus assuntos pessoais” (EA, p. 384).

Empatia vivenciada

Edith faz um curso de auxiliar de enfermagem e torna-se assistente de enfermeira no hospital de doenças contagiosas de Mährisch-Weisskirchen. Com a guerra, ela experimenta uma nova realidade: a morte. Ela a tinha vivenciado ao saber de um tio que havia se suicidado, mas agora ela a enfrentaria de perto. Tinha apenas 23 anos. Chegou no hospital em 7 de abril de 1915 e passou por diferentes enfermarias. Foram poucos meses que ela ficou como enfermeira durante a guerra, pois ela sumiu tantas responsabilidades, comendo e dormindo pouco, que os médicos a aconselharam voltar para casa, se alimentar direito e se restabelecer, para depois poder retornar ao trabalho.

Estavam todos muito satisfeitos com o modo como ela assumia grandes responsabilidades, sem descuidar do cuidado com os pacientes, mantendo também uma relação cordial com a equipe de enfermagem e os médicos, mesmo aquelas pessoas mais difíceis.

Tratamento humano

A experiência de Edith no hospital militar foi extremamente rica e importante para o desenvolvimento de sua investigação sobre a vivência da empatia. A sensibilidade e a atenção com as quais se voltava para as pessoas lhe permitiram vivenciar, em “carne e osso”, a importância de desenvolver a própria capacidade empática.  Esse desenvolvimento pode se dar em diferentes graus, pois a empatia – que é diversa da simpatia ou compaixão, assim como da antipatia – surge com todo ser humano. É a capacidade de se perceber como um “eu em geral” está frente a outro “eu em geral”, e não frente a um animal, uma planta, ou mesmo a um manequim ou uma imagem holográfica.

Desse primeiro nível básico, que até uma criança pequena possui, pode-se desenvolver uma maior capacidade de compreender o que o outro está vivenciando e sentindo, mas sabendo que cada um tem uma experiência única e pessoal de suas próprias vivências.

“Eu pessoal”

Se formos suficientemente próximos desse outro a ponto de perguntar a ele o que está vivenciando e trocar experiências, confirmaremos, ou não, o que achamos que ele vivencia por meio de nossa capacidade empática e teremos maior possibilidade de perceber aquele “eu” que está frente a mim como um “tu”: com uma mesma estrutura geral, semelhante à minha, mas preenchida a seu modo pessoal e irredutível. Por meio da vivência sui generis da empatia, sou capaz de perceber o outro e a mim mesmo como um “eu pessoal”, como uma “pessoa”, no sentido pleno da palavra, com as dimensões corpórea, psíquica e espiritual (afeto, intelecto e vontade livres).

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O contato com o paciente mais grave

Edith, munida de tais pensamentos, começa o seu contato com os doentes, enfermeiros e médicos do hospital de doenças contagiosas. Tem em mente que todos eles merecem ser bem tratados e olhados em sua dignidade. Isso é, para ela, assumir com responsabilidade o seu amor pela humanidade: engaja-se socialmente, demonstra abertura ao outro e age motivada pelo sentimento de solidariedade.

Depois de minha chegada, a enfermeira Loni me conduziu pela sala, mostrando-me todas as instalações e informando-me sobre os doentes. Insistiu para que eu desse mais atenção ao doente mais grave. (…) pediu-me para limpar sua boca com um pano toda vez que eu passasse por ele. Ele me agradecia com o olhar por esse gesto caridoso. Não conseguia falar nada, pois perdera a voz totalmente. A cada visita médica, ele era minuciosamente examinado. Os médicos e enfermeiras falavam sobre ele, ao seu lado, como se ele nada compreendesse. Mas eu percebia, nos seus olhos grandes e brilhantes, que ele estava perfeitamente consciente, prestando atenção a cada palavra dita (EA, p. 422-423).

Edith estranhava como alguns enfermeiros e médicos tratavam os doentes, como se eles não fossem pessoas dignas, que mereciam ser respeitadas em sua integralidade. Ao continuar o seu relato, ela conta sua primeira experiência com a morte desse paciente que cuidou com tanto carinho e atenção, a ponto de passar noites sem dormir ao lado dele.

Na última noite, ainda lhe apliquei algumas injeções. No intervalo entre uma e outra, ouvi sua respiração do lugar onde me encontrava – ela havia cessado bruscamente. Fui para seu leito: o coração não batia mais. Agora deveria fazer o que nos fora prescrito em tal caso. Arrumar os objetos pessoais que estavam com ele e enviá-los ao comandante militar (…); chamar o médico para dar um atestado de óbito, ir com o atestado até a guarda de entrada e pedir aos soldados para levarem o morto numa maca; por último, dar fim a toda a roupa de cama” (EA, p. 438).

A lição sobre a morte

Edith estava conseguindo manter-se relativamente calma, mas algo aconteceu logo em seguida que tocou profundamente a sua alma. Quando ela foi ajuntar os pertences do soldado falecido, caiu de seu caderno de anotações um pequeno bilhete: uma oração que a sua esposa tinha escrito, pedindo a Deus para que ele continuasse vivo. Diz Edith que naquele instante percebeu “o que a morte daquele homem podia significar no plano humano” (EA, p. 438).

Esgotada pelo intenso trabalho e dedicação incondicional, ligada ao vivo sentido de dever, Edith chega à exaustão e lhe aconselham a retornar à casa. Aceita ir, mas com o firme propósito de voltar. Felizmente a guerra começa a ceder, o hospital é desativado e ela não é mais chamada.

Exemplo de Edith Stein para a nossa vida

Podemos trazer essa experiência da Edith para esses tempos de pandemia, em que muitas vezes se olhou para as milhares de mortes diárias como se fossem apenas números. Com isso fomos diminuindo a nossa capacidade empática de ver o outro como um ser humano, como uma pessoa. E quando isso acontece, reflete-se no modo como eu também me vejo, ou seja, a minha percepção interna também vai ficando embotada. Olhar para o próximo com amor é, além de um mandamento de Deus, um modo de preservar a minha própria humanidade.

Precisamos cuidar para não cair nessa armadilha, que parece que nos preserva de sofrer com o sofrimento alheio e ajuda a nos manter psiquicamente mais “saudáveis”, pois necessariamente precisamos uns dos outros para constituir a identidade própria: o que eu faço com o outro acaba refletindo no que eu faço comigo mesmo. Edith Stein mostrará em sua tese que “a empatia e a percepção interna andam de mãos dadas para dar o meu eu a mim mesmo”. Veremos isso no próximo artigo.

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