Sinal de alegria

Sangue de Cristo, inebriai-me

O Sangue do Senhor é capaz de inebriar a nossa alma da alegria de fazer a vontade de Deus

A famosa oração de Santo Inácio de Loyola – ‘Alma de Cristo’ – atribui ao Sangue de Jesus um efeito inebriante: “Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriai-me…”. A oração tornou-se patrimônio da piedade católica, sendo sugerida no Missal Romano como ação de graças após a Missa.

O termo, certamente, guarda relação com o efeito inebriante do vinho, sinal sacramental do Sangue do Senhor, mas a expressão não deixa de ser inquietante, principalmente se considerarmos o ângulo negativo com o qual as Sagradas Escrituras vêem a embriaguez (a possível exceção de Pr 31,6-7 parece mais ser uma amarga ironia):

“Coisa luxuriosa é o vinho, e perturbadora o licor: quem se delicia com eles não será sábio” (Pr 20,1). 

“Não convém aos reis beber vinho nem aos magistrados gostar de bebida inebriante: porque, ao beberem, esquecem-se dos julgamentos e pervertem a causa de todos os pobres” (Pr 31,4-5; ainda Pr 23,31-34; 1Pd 4,3; 1Tm 3,3 e outras passagens).

Foto ilustrativa: Daniel Mafra / cancaonova.com

Obviamente, aqui não se trata de uma embriaguez física, de quem se excede na bebida, mas de algum efeito espiritual que se compara, analógica e simbolicamente com os efeitos produzidos pelo vinho. Quais seriam esses efeitos?

A alegria da salvação

Em diversas passagens da Bíblia, o vinho aparece como sinal de alegria: “O vinho foi criado para a alegria” (Eclo 31,35), fala o Sirácides; “alegria da alma, júbilo e prazer do coração é o vinho bebido, com moderação, a seu tempo” (Eclo 31,36). Mais ainda, ele simboliza a alegria da salvação trazida por Deus, descrita, por exemplo, pelo profeta Isaías como “um banquete de vinhos finos, de carnes suculentas e vinhos depurados” (Is 24,6).

Esse é o primeiro sentido do inebriar-se com o Sangue do Senhor, a que se refere a oração: um estado de alegria, que vivifica a alma. A vida cristã não precisa ser vivida como um peso, um fardo: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e sede discípulos meus, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 12,28-30). O Sangue do Senhor é capaz de inebriar a nossa alma da alegria de fazer a vontade de Deus, a alegria de quem encontrou o tesouro, a pérola preciosa (cf. Mt 13,44-46). A pessoa, então, faz sem esforço, com satisfação, tudo aquilo que Deus quer.

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Outro efeito notório da embriaguez é a insensatez por ela causada, contra a qual, aliás, alerta insistentemente a Escritura Sagrada. O vinho faz os tolos, produz os insensatos. Lembramos, porém, as palavras de São Paulo, que falam de uma dupla sabedoria e de uma dupla insensatez: a sabedoria do mundo e a sabedoria de Deus; a loucura do mundo e a loucura de Deus. Elas se opõem reciprocamente, de modo que o que é sábio para Deus é insensato para o mundo e vice-versa: “os judeus pedem sinais, os gregos buscam sabedoria. Nós, porém, proclamamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. O que para o mundo é loucura, Deus o escolheu para envergonhar os sábios” (1Cor 1,23-25.27).

Ser louco para abraçar a vida cristã

Para ser sábio aos olhos de Deus, é preciso ser insensato, ser louco aos olhos do mundo. Com efeito, o que é aos olhos do mundo que não crê, o mandamento do perdão, o amor aos inimigos, o perder a vida para ganhar a vida eterna? Tudo isso não é tido por pura insensatez, loucura? Do mesmo modo, os valores do mundo, sem fé, são loucura aos olhos de Deus. “Ninguém se iluda: se algum de vós se julga sábio diante deste mundo, faça-se louco, para tornar-se sábio; pois a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1Cor 3,18-19).

Escrevia um monge cartuxo: “Toda a nossa sabedoria está fundamentada na loucura da cruz, ao contrário de toda a sabedoria humana” (ver 1Cor 1 e 2). Falamos, talvez demais, do sábio equilíbrio de nossa vida. Esquecemos que, humanamente, é preciso ser louco para abraçar a vida cristã! “Eu vim trazer fogo à terra” (Lc 12,49) [1].

É essa “insensatez divina” que nos é concedida pelo Sangue do Senhor. Inebriados pelo Sangue de Cristo, tidos por insensatos e fracos aos olhos do mundo, exultamos de alegria, pois “o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1Cor 1,25). Assim seja.

[1]. ‘Monge da Ordem dos Cartuxos, O discernimento dos espíritos’, Paulinas, São Paulo, 2006. Os monges e monjas da Ordem da Cartuxa, fundada por São Bruno, buscam na solidão e no silêncio o encontro com Deus.

Artigo extraído do Devocionário ao Preciosíssimo Sangue de Jesus