Ao tratarmos da cura de gastrimia (gula), a primeira coisa que nos vem à mente, evidentemente, é o jejum. No entanto, sejamos sinceros, quem é que ainda leva a sério o jejum? Para a maior parte das pessoas, o jejum é uma prática antiquada, desnecessária, quando não, completamente absurda.
Até entre os “bons católicos” a prática do jejum é vista com desconfiança. Afinal, somos pessoas equilibradas. Nada de radicalismos! Quando muito, ainda é possível encontrar quem se recorde do velho Catecismo: “O quarto mandamento (da Igreja): jejuar e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja”. Mas, quando é que a Santa Mãe Igreja nos manda jejuar? A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou, em 1987, a Legislação Suplementar ao Código de Direito Canônico, que diz o seguinte:
O que diz a Igreja sobre jejuar, conforme os cânones 1251 e 1253:
1. Toda sexta-feira do ano é dia de penitência, a não ser que coincida com solenidade do calendário litúrgico. Os fiéis, nesse dia, abstenham-se de carne ou outro alimento, ou pratiquem alguma forma de penitência, principalmente obra de caridade ou exercício de piedade.
2. A Quarta-feira de Cinzas e a Sexta-feira Santa, memória da Paixão e Morte de Cristo, são dias de jejum e abstinência. A abstinência pode ser substituída pelos próprios fiéis por outra prática de penitência, caridade ou piedade, particularmente pela participação nesses dias na Sagrada Liturgia.
Bem, talvez, do jejum e da abstinência na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa, a maior parte dos católicos se recorde. Porém, é provável que a maioria não faça a mínima ideia de que, a abstinência de carne às sextas-feiras, ainda existe! Mas isso não é motivo para que alguém se sinta mal. Muitos e nobres eclesiásticos sofrem da mesma miséria. Magra consolação!
“Mas isso é somente uma lei da Igreja!”, alguém poderia dizer. Depois de constatar essa obviedade, desfiar um rosário de argumentos contra a prática do jejum: “Não está na hora de a Igreja deixar de lado essas tradições medievais? Por que incentivar o jejum? Não existe algo de mal neste masoquismo de querer se penitenciar? Isso não prejudica a saúde? Qual o sentido do jejum, se a pessoa não trabalha para transformar a sociedade?”.
Com argumentos desse tipo, livramo-nos do problema, varrendo-o para debaixo do tapete. Acho que os Santos Padres não estariam exatamente de acordo com esse procedimento.
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O ensinamento de Santo Tomás de Aquino
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), que era um mestre em argumentação, ensina-nos a distinguir duas realidades diferentes no jejum:
a) O mandamento da Igreja
b) A lei natural
Os dias em que eu devo jejuar, e as formas de realizar esse jejum são uma lei da Igreja (a). Mas o jejum não é uma invenção da Igreja. A necessidade de jejuar é uma lei que, Deus imprimiu na natureza humana (b), ou seja, compete às autoridades da Igreja determinar alguns tempos e modos de jejuar, já que é dever dos pastores cuidar do bem das ovelhas. No entanto, mesmo se não houvesse uma legislação canônica, as pessoas teriam de jejuar, pois, se trata de uma exigência da própria natureza do homem. Sim, é isso mesmo! Por estranho que possa soar aos seus ouvidos, a ascese e o jejum são imperativos da ética humana natural e não uma tradição de algumas religiões e culturas exóticas. O jejum e a abstinência são instrumentos necessários para que, possamos chegar a ser não heróis ou semideuses, mas simplesmente, humanos.
A virtude da temperança
Talvez, uma comparação nos ajude a compreender melhor essa realidade. Quando alguém compra um carro, as montadoras geralmente dão a oportunidade de a pessoa escolher os “opcionais”: ar-condicionado, airbag, direção hidráulica etc. No entanto, num automóvel, o sistema de freios não é opcional, e sim essencial do próprio veículo. De nada adiantaria ter um automóvel se ele não tivesse um freio.
O ser humano também é assim. Precisamos de um sistema de freios, de algo que nos sirva de limite, porque a vida humana desregrada é semelhante a um carro desgovernado. O que era uma bênção transforma-se numa maldição. O jejum e a abstinência fazem parte desse sistema de freios que, no ser humano, recebe um nome: virtude da temperança.
Trecho retirado do livro “Um olhar que cura”.