Em 1923, Edith conhece o padre jesuíta Erich Przywara, editor e responsável pela divulgação da obra do Cardeal Newman – bispo anglicano, que se converteu ao catolicismo. Przywara convidou Edith para traduzir algumas obras do cardeal Newman, e ela ficou muito feliz, pois lhe possibilitou penetrar mais profundamente no pensamento de Newman, assim como na doutrina católica.
Edith foi aprofundando a fé dela e se assegurando cada vez mais de sua decisão de se fazer batizar na Igreja católica, vista pelos protestantes como dogmática e distante da liberdade intelectual. A tradução das obras de Newman – A Ideia de Universidade e Cartas e escritos anteriores à conversão dele – ajudou a Edith, que nesse período estava provavelmente buscando operar uma síntese entre a sua formação intelectual fenomenológica e a sua vivência da fé cristã católica.
Edith escreve ao seu amigo Roman Ingarden, em 19 de junho de 1924, sobre a alegria dela em traduzir e ficar mais próxima “de um espírito como Newman”, pois a vida inteira dele “consistiu numa busca da verdade religiosa, e o conduziu inevitavelmente à Igreja católica”. Logo em seguida, nesta mesma carta, Edith chama a atenção de seu amigo Ingarden, pois, em uma carta anterior, ele lhe havia escrito que não entendia a conversão de Edith ao catolicismo, pois esse lhe parecia um “aparato dogmático inventado para domínio das massas”.
Quais eram os questionamentos de Edith Stein
Argumentando com muita liberdade, Edith lhe questiona a atitude ambígua dele: como fenomenólogo, Ingarden reivindica uma objetividade rigorosa, não emite nenhum juízo sobre qualquer questão filosófica sem uma cuidadosa investigação, mas quando se refere à religião católica, a critica e a condena sem nunca ter se empenhado em estudar, ao menos nas aulas de religião na escola, sobre os seus dogmas, fundamentos teológicos e desenvolvimento histórico. Edith acrescenta que essa crítica não se dirige apenas a Ingarden, pois é uma atitude típica de um intelectual que não foi educado na vida eclesial, visto que ela mesma pensava desse modo antes de se converter.
Nesta mesma carta, Edith segue citando homens como Agostinho, Anselmo, Boaventura e Tomás, grandes teólogos da Igreja, que viram nos dogmas “algo maior do que o espírito humano consegue atingir, é o único pelo qual vale a pena oferecer a vida”. Coloca-se à disposição do amigo para responder e argumentar quaisquer questões que possam lhe interessar e que sejam apresentadas por ele, de modo imparcial, sobre o tema. Edith finaliza com uma frase que resume a conversão dela, mostrando que não estava fundamentando-se apenas em belas teorias, mas em uma experiência real e verdadeira de vida: “Eu aprendi a amar a vida desde que sei para que vivo” (Carta de 19 de junho de 1924).
Penetrando no pensamento de Santo Tomás de Aquino
O Padre Przywara também era estudioso da obra de Santo Tomás, que despertava muito interesse à época – final do século XIX e início do século XX. O esforço era de tentar compreender o pensamento tomasiano valendo-se dos textos do próprio Tomás e não de manuais empregados para sintetizar e ensinar aos alunos, especialmente religiosos, a filosofia e teologia de Santo Tomás. Essa corrente considerava muito mais proveitoso colocar Tomás e a filosofia tradicional católica em diálogo com a filosofia moderna, buscando nas obras dele argumentos válidos para responder aos problemas filosóficos que estavam surgindo naquele tempo, do que tentar voltar a um passado e a uma visão de mundo que o próprio Tomás não mais reconheceria como sua, caso vivesse no tempo presente.
Przywara exorta Edith Stein a não abandonar os estudos de filosofia, apesar de suas aulas nas dominicanas, e a ocupar-se de um estudo sistemático da obra de Santo Tomás de Aquino, lendo no original em latim – língua que ela dominava perfeitamente. Ele a orienta pessoalmente e sugere que faça a tradução das Quaestiones Disputatae de Veritate (Questões disputadas da verdade). Para conseguir realizar o que lhe havia sido pedido, no semestre de 1925-1926, Edith pede às irmãs dominicanas para reduzir as suas lições a apenas 10 horas por semana, com o intuito de se dedicar mais ao estudo de Santo Tomás. Elas compreendem e prontamente aceitam.
Além de seus estudos sobre Tomás e suas aulas na escola das dominicanas, Edith não deixa de se dedicar à questão da educação, especialmente das moças, e não recusa os inúmeros convites que lhe serão feitos para dar conferências sobre o tema da formação e da educação, na Alemanha e em outros países próximos, tais como Áustria e Suíça.
Beuron – antessala do céu
Em setembro de 1927, faleceu o Padre Joseph Schwind, grande amigo e diretor espiritual de Edith. Ela sofre muito com essa perda, mas a vida de fé de Edith, permite a ela olhar mais além e a ter a certeza de que Deus lhe ajudará a superar tal sofrimento. Edith é convidada a escrever sobre o seu diretor e amigo, então, descreve o modo como ele conduzia a sua direção espiritual: “Sua direção era calma, acertada e refletida, fundada sobre um grande conhecimento dos seres humanos e a longa experiência na direção das almas e, ao mesmo tempo, acompanhada de um santo respeito pela ação de Deus na alma”.
Em janeiro de 1928, ao encontrar-se com o Padre Przywara, ele lhe aconselha a conhecer o jovem abade polonês da abadia beneditina de Beuron, Dom Raphaël Walzer (1888-1966). Na Semana Santa do mesmo ano, ela consegue se hospedar em uma casa próxima da abadia e é apresentada a Dom Walzer, que a acompanhará em seu percurso espiritual até a sua entrada no Carmelo. Edith Stein o chama de “meu abade” e sempre recorre a ele em todas as decisões importantes que pensa em tomar.
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Muito bonito ver a humildade dessa grande intelectual, que não deseja dar passos falsos na sua vida de fé, apesar de seus grandes conhecimentos, não apenas de filosofia, educação, literatura, mas também de teologia e da doutrina católica. A direção espiritual era algo imprescindível para ela, pois seguia o que havia aprendido de sua Madre, Santa Teresa, que mantinha essa postura com seus confessores e diretores, mesmo quando se sentia incompreendida por eles. O Livro da Vida de Teresa de Jesus está repleto desse tipo de relato.
A partir de 1928 até a sua entrada no Carmelo, em 1933, Edith vai, ao menos uma vez por ano, a Beuron, durante o período de férias escolares da Semana Santa. Ela descreve a abadia beneditina como uma “antessala do céu”. Lá ela recebe a direção espiritual e goza de longos tempos de oração e de silêncio, especialmente durante as orações das horas. Aproveita também para trabalhar na tradução do Quaestiones Disputatae de Veritate de Santo Tomás de Aquino.
Diálogo entre Tomás e Husserl – reflexões sobre a fé e a razão
Em 1929, Edith Stein publica um artigo no livro organizado por Heidegger, para a comemoração dos 70 anos de Husserl, intitulado: A fenomenologia de Husserl e a filosofia de Santo Tomás de Aquino – Ensaio de um cotejo. A versão original do texto, em forma de diálogo-peça de teatro, não foi aceita por Heidegger. Edith Stein, com muita liberdade, mas sem perder o rigor científico, achou que seria interessante aplicar seus dons e conhecimentos de poesia e literatura, que cultivava desde a juventude, para imaginar um diálogo fictício entre o seu Mestre de fenomenologia e o grande Mestre da escolástica, Tomás de Aquino. A fenomenologia lhe havia ensinado a olhar sem preconceitos para todos os tipos de conhecimentos, desde que contribuíssem para uma maior aproximação da verdade sobre as coisas, de sua essência, do modo como elas realmente são. Mas seu primeiro texto não foi aceito, então, Heidegger lhe pede para transformar o seu diálogo em um “texto científico”.
A obra original, escrita no formato de uma peça de teatro, trata de um diálogo entre Husserl e Santo Tomás. O encontro dos dois acontece na noite do aniversário de 70 anos de Husserl, após a celebração com a família e amigos. Tarde da noite, Husserl deixa a sala de sua casa e se retira para seu escritório, pois se encontra cansado dos eventos sociais do dia. Husserl afirma estar desejoso de “uma verdadeira conversa filosófica”, a fim de que seus pensamentos possam “retomar o caminho certo” em sua mente. Neste momento, alguém bate à porta de seu escritório: um frei de hábito branco e capa preta pede perdão por importuná-lo e diz que gostaria muito de falar com ele a sós. Apresenta-se como sendo Tomás de Aquino.
Esse texto de Edith Stein, apesar de não ter sido reconhecido como científico e não ter sido publicado durante a sua vida, ilustra perfeitamente o objetivo que ela passou a percorrer após a sua conversão: colocar a tradição católica em diálogo com a filosofia moderna, de modo que ambas pudessem aprofundar e enriquecer os seus próprios pontos de vista. Esse objetivo será realizado em sua forma mais completa na obra magna de Edith Stein, escrita quando já estava no Carmelo: Ser finito e ser eterno.
Edith buscou aquele tipo de conhecimento que o Papa João Paulo II descreve na introdução de sua encíclica Fides et Ratio, de 1998:
A Fé e a Razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.
Na sequência, veremos Edith nessa sua busca da verdade, amadurecendo cada vez mais o desejo de conhecer e amar a Deus, sentido e fim último de sua existência.
Referências bibliográfica:
1. GOLAY, Didier-Marie, o.c.d. Edith Stein – Devant Dieu pour tous. Paris: Cerf, 2009, p. 127.
2. Esse primeiro texto, em forma de diálogo, é publicado postumamente na Edith Stein Werke, Erkenntnis und Glaube (vol. XV), Freiburg, Basel, Wien: Herder, 1993, p. 19-48. Essas duas versões encontram-se no segundo volume da versão crítica traduzida para o português das Obras completas de Edith Stein. Textos sobre Husserl e Tomás de Aquino. Trad. Enio Paulo Giachini et. al. Revisão da tradução e revisão técnica Juvenal Savian Filho. São Paulo: Paulus, 2019.
3.STEIN, Edith. O que é filosofia? Uma conversa entre Edmund Husserl e Tomás de Aquino. Op. cit., p. 55.
4. Carta Encíclica do Sumo Pontífice João Paulo II, de 14/9/1998.