Entenda

Você sabia que Santo Irineu de Lião combateu o gnosticismo?

Para falar do Gnosticismo dos primeiros séculos da era cristã, é preciso citar o nome e o pensamento de um grande personagem da época: Santo Irineu de Lião. Sua vida, seu pensamento e sua luta contra o gnosticismo serão tratados neste e no próximo artigo.

Neste primeiro artigo, conheceremos quem foi este grande padre apostólico (vir apostolicus – “varão apostólico”), o contexto histórico em que ele viveu e a definição do termo “heresia”. No segundo, abordaremos a diferença entre gnose e gnosticismo, e os pontos fundamentais e divergentes entre o pensamento cristão e o gnóstico. Além disso, apresentaremos o pensamento de Santo Irineu no combate a essa doutrina herética.

Você sabia que Santo Irineu de Lião combateu o gnosticismo?

Créditos: Lucien Bégule / cancaonova.com

Quem foi Santo Irineu?

Apesar da incerteza na datação do nascimento de Santo Irineu, costuma-se localizar seu nascimento em torno de 140 (d.C.), em Esmirna, na Ásia (atual Turquia). Ainda bem jovem, Irineu aproximou-se do velho Policarpo, bispo (martirizado em 156), para ouvir seus formidáveis ensinamentos sobre a Igreja nascente. Policarpo, por sua vez, fora discípulo do apóstolo João.

Possuindo uma ampla cultura grega, Irineu estava a par das diversas correntes filosóficas do seu tempo. Seu temperamento dotado de grande ponderação e prudência levou-o a ser eleito bispo de Lião por aclamação popular. Sucedeu ao bispo mártir São Potino (ou Fótino), que morrera por maus tratos na prisão aos 90 anos de idade.

Irineu, durante sua vida episcopal, fez diversas intervenções junto às igrejas de Roma e do Oriente, por meio de cartas, e posicionou-se em diversos e acirrados debates em favor da católica. Todavia, seu mérito histórico maior foi de ter identificado, estudado e refutado radicalmente o gnosticismo, uma corrente de pensamento surgida antes mesmo do nascimento de Jesus e que perdurara pelos séculos seguintes.

Com relação à sua morte, pouca coisa se sabe. Uma tradição tardia afirma ter sido martirizado por heréticos, depois do ano 200, com cerca de 70 anos de idade. Uma segunda tradição, “afirma ter morrido num massacre geral de cristãos lionenses” por volta do ano 202. A Igreja o venera como mártir, celebrando-o a 28 de junho” (IRINEU DE LIÃO, 2012, p. 16).

O contexto histórico dos primeiros séculos

Para nos ajudar a melhor entender o pensamento de Santo Irineu, convém fazer uma breve contextualização do ambiente em que ele viveu. Durante os primeiros séculos, o relato das perseguições aos cristãos e à “seita” fundada por um certo Jesus Cristo, constitui uma das páginas mais extraordinárias da história do cristianismo. Desde o início, a palavra “cristão” se configurava simples sinônimo da expressão “vítima destinada aos suplícios” pelas autoridades romanas.

A esse respeito, o historiador Daniel-Rops afirma que, desde os anos 64 a 314 (d.C.), não se passou nenhum dia sem que se pesasse sobre uma alma cristãmente fiel a ameaça de um terrível fim. Esses homens dos primeiros tempos “imprimiram na sua crença o selo do sacrifício voluntário […]” (ROPS, 2014, p. 155).

Nesse contexto, durante o reinado do imperador romano Antonino Pio (138 a 161 d.C), inúmeros cristãos foram aprisionados em Lião e Viena (Gália), em decorrência dessa perseguição religiosa. Esses homens, aprisionados em Lião, receberam a pena capital. Foram tempos em que padres apologistas como São Justino, Santo Irineu, Tertuliano e outros, tidos como corajosos pela tradição católica, escreveram para os imperadores da época na defesa da fé cristã e, por conseguinte, foram perseguidos e/ou martirizados.

O que é, afinal, uma heresia?

Já que o nosso artigo tem como objetivo apresentar as postulações mais gerais acerca do gnosticismo, é importante ter ciência do que se trata uma heresia. Etimologicamente, a palavra “heresia” vem do termo grego háiresis, e quer dizer escolha. No horizonte católico, heresia é a negação de uma ou mais verdades de fé.

Segundo o Código de Direito Canônico, no cânon 751, está explícito: “heresia é a negação [obstinada], após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou a dúvida [obstinada] a respeito dela […]”.

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O Dicionário Teológico Enciclopédico informa que, além do aspecto doutrinal, na Igreja primitiva a heresia era considerada um grave pecado contra a unidade eclesial. Assim, era usado contra os hereges o mesmo rigor da disciplina penitencial eclesiástica reservada aos pecadores públicos: a exclusão da comunhão eclesial. O Dicionário ainda completa que, atualmente, a atitude da Igreja diante da heresia é bem diferente, tendendo descobrir nelas aspectos positivos, ainda que parciais.

A Constituição pastoral Gaudium et Spes, no número 44, diz que a Igreja reconhece que mesmo as muitas resistências e oposições que sofreu no passado e que ainda sofre lhe são proveitosas, como sempre o foram.

O surgimento das primeiras heresias

Na medida em que a fé cristã ia se disseminando, as primeiras heresias começaram a surgir. Diante delas, a reação inicial dos verdadeiros cristãos, vai dizer o grande historiador Daniel-Rops, era de dor. Num segundo momento, a dor se transformava em uma atitude de reação. Cada comunidade se agrupava em torno de seu bispo, para que essas heresias não “contaminassem” aquela fé que estava se estruturando e se purificando.

Talvez, a maior dificuldade que os primeiros baluartes da fé precisaram enfrentar foi o fato de que muitas dessas primeiras heresias mal se distinguiam da verdadeira fé. A princípio, julgava-se tratar “apenas de diferenças de temperamentos ou matizes, e só mais tarde é que as posições se [tornavam mais] precisas […]” (ROPS, 2014, p. 289). Esse precioso espaço de tempo entre o surgimento da heresia e sua impugnação por parte dos representantes da Igreja contribuía para que o mal tivesse tempo para se alastrar.

Se, por um lado, as heresias representavam – e ainda representam – grandes riscos para a fé cristã, por outro, tendo em vista o grande esforço que esses grandes homens de fé faziam para superá-las, esses pensamentos heréticos foram responsáveis pela construção de uma doutrina que deu ao pensamento cristão sua base definitiva.

Grandes nomes da época  que se levantaram contra as primeiras heresias

Nos primeiros séculos, surgiram nobres espíritos defensores da fé, por exemplo: Inácio de Antioquia (35), Policarpo de Esmirra (69), Justino Mártir (100), Tertuliano de Cartago (160), Melitão de Sardes (172), Teófilo de Antioquia (180) dentre outros. Diante desse quadro de grandes nomes, surge o nosso personagem principal: Santo Irineu de Lião.

O bispo de Lião constata que o seu rebanho estava ameaçado e o perigo gnóstico rondava-os em Roma. Uma vez que a heresia progredia a sua volta, Irineu “arregaça as mangas” e lança a verdade contra as falsas teses. As teses gnósticas “reivindicavam para si o direito de conhecer a Deus e os mistérios pelas vias da inteligência humana, mas se viu a que loucuras chegavam” (ROPS, 2014, p. 292). Com essa maneira de pensar, os gnósticos atiram Deus para um profundo abismo a ponto de Ele se tornar inacessível.

Uma vez citado o contexto histórico em que viviam os cristãos dos primeiros séculos e feito um breve aceno para o pensamento gnóstico, no próximo artigo, veremos com mais detalhes a diferença entre gnose e gnosticismo. Além disso, explicaremos, de maneira mais aprofundada, a formulação de alguns raciocínios de perspectivas gnósticas que divergem do pensamento cristão. Serão tratados, também, os argumentos feitos por Santo Irineu no combate a essa doutrina herética.

Deus abençoe você. Até a próxima!

Referências:

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. Tradução Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Loyola, 2001.
CONCÍLIO VATICANO II. 1962- 1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. Tradução Francisco Catão. São Paulo: Paulinas, 2007.
DICIONÁRIO TEOLÓGICO ENCICLOPÉDICO. Lexicon. Tradução João P. Neto e Alda da A. Machado. São Paulo: Loyola, 2003.
IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. Tradução Lourenço Costa. São Paulo: Paulus, 2012. LIÉBAERT, Jacques. Os Padres da Igreja: [Séculos 1 – IV]. Tradução Nadyr de Salles Penteado. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2004.
ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. Tradução Emérico da Gama. 3 ed. São Paulo: Quadrante, 2014.