Reflexão

Como progredir nas segundas moradas da vida espiritual?

Segundas moradas, uma aproximação maior com Cristo

Como vimos nos artigos anteriores, as segundas moradas do castelo interior da alma iniciam uma nova fase dentro do período ascético: a via iluminativa. Com a vivência plena dos mandamentos e a construção das virtudes nas primeiras moradas, é possível, agora, aprofundar-se no contato com Cristo, construir uma história com Ele.

Age, aqui, o sexto dom do Espírito Santo, o dom de entendimento ou inteligência. Essa “inteligência” é a abertura de um conhecimento mais profundo das coisas espirituais. Abre-se a inteligência espiritual e o entendimento das verdades de fé. Do mesmo modo, as revelações contidas nas escrituras começam a ficar claras e evidentes. O dom do entendimento ilumina o sentido espiritual das palavras de Jesus e sua aplicação imediata na vida. Isso é retratado nas escrituras como quando o povo se admira de sua doutrina e diz que Jesus ensina com autoridade, não como os escribas e fariseus (Mt 7,29). Podemos dizer que, nas primeiras moradas, ainda entendia-se mais a letra que o espírito (2Cor 3,6) e, agora, finalmente, ouve-se realmente a Palavra, porque se é capaz de permanecer nela (Jo 8,31).

Como progredir nas segundas moradas da vida espiritual

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

Na relação entre os dons e as bem-aventuranças que examinamos anteriormente, o dom de entendimento corresponde à felicidade dos puros de coração. Felizes são os puros de coração, porque verão Deus. De fato, livres das paixões que ainda controlavam o intelecto nas primeiras moradas, com uma vontade treinada e fortalecida para buscar a Deus, começa-se a construir uma pureza de coração que nos revela o próprio Cristo. Embora ainda não seja o ver “face a face”, essa “visão” nova, motivada pelo conhecimento, provoca uma intimidade que faz crescer o amor a Deus. Aqui, observa-se como os mandamentos de Deus são perfeitos e iluminam os olhos e deleitam o coração (Sl 18,9).

Também experimenta-se, nessas segundas moradas, sob influência do dom de entendimento, uma oração mais forte, leituras espirituais ou da Bíblia muito mais claras; e até o rito da Missa ganha mais sentido, fazendo a própria participação mais eficaz.

As virtudes teologais nas segundas moradas sobem de nível

Aqui, as virtudes teologais precisam ser elevadas a um novo nível, principalmente a fé e a esperança. São João da Cruz nos lembra que a fé tem ligação direta com a inteligência, e a esperança com a memória. Por isso, o dom de entendimento tem grande força sobre essas virtudes teologais potencializando-as (Subida II,6).

Para dar forma ao espírito de fé (ST II-IIQ7), é preciso começar a ver Deus e o mundo por meio da fé, sem o vaivém dos nossos sentimentos e dos caprichos do nosso coração, que acabam projetando em Deus atitudes e decisões humanas. Diferentemente de nós, o Senhor tem a ciência e o controle de tudo (Lc 12,7). Ver o mundo por meio da fé é começar a desprezar valores puramente humanos como honra, títulos, aparências e valorizar a mansidão, o anonimato e até mesmo a pobreza criada pela austeridade. Quem vê o mundo por meio da fé percebe que é melhor viver uma vida santa do que uma vida longa. Entende a dor e o sofrimento como uma oportunidade de sacrifício e oferecimento, não um castigo. Finalmente, o cristão das segundas moradas liga-se ao sobrenatural, não se sujeitando mais a uma visão exclusivamente materialista do mundo.

O crescimento da esperança nas segundas moradas precisa ser pautada por uma absoluta confiança em Deus. Ele quer nosso bem. Não há necessidade de se preocupar com o amanhã (Mt 6,34) e, no hoje, é possível abandonar-se como criança no colo de Deus. O simplificar-se e o simplificar a vida diz muito a respeito disso. Os “ricos de espírito” precisam de muitas coisas dentro e fora de si para se apoiar, os que confiam em Deus sabem que “tudo passa, só Deus basta” (Santa Teresa de Jesus). Assim, outro indicador de uma esperança fortalecida é o desprender-se. Afinal, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1,2).

Nessas moradas, a caridade (ou amor a Deus) deve ser vivida progredindo-se sempre no bem. Também o amor aos inimigos e desafetos pessoais precisa começar a aparecer (Mt 5,46). Fundamentalmente, pertencem a essas moradas, a luta contra os pecados veniais. É necessário desterrá-los do coração, pois, se por um lado é “menos grave” para a vida espiritual, eles são raiz para a construção dos pecados mortais. Esses, de forma alguma, podem retornar sob o risco de se perder tudo o que se construiu até aqui.

Santa Teresa alerta que, nessas segundas moradas, grande é o combate espiritual (Castelo 2M,5-6). O demônio sabe que o cristão das primeiras moradas está muito próximo de um deslize para sair do castelo e perder a salvação. Também sabe que, aquele que já se aventura pelas segundas moradas pode perceber o imenso benefício desse progresso espiritual e se animar a progredir com força e constância. Aquele que progride sempre arrasta outros e, assim, o benefício se espalha. Por último, como mostrado no artigo anterior, nas segundas moradas é comum o grande desejo de fazer o bem ser acompanhado por um despreparo para alcançá-lo e, por isso, o demônio investe pesado neste momento para desestabilizar e impedir o progresso.

Nem rápido demais, nem tarde demais

Também ficou assinalado, no artigo anterior, que todo esse conhecimento que precisa ser adquirido sobre Cristo é muito mais para o crescimento da intimidade com Deus do que para o conhecimento enciclopédico de fatos históricos, exegéticos ou bíblicos. Afinal, quantos são os acadêmicos e teólogos que conhecem as vírgulas da fé, mas não conseguiram desenvolver nenhuma experiência prática com ela? O saber adquirido sobre Deus deve inflamar o nosso amor, não o apagar.

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Nesse ponto, muitos cristãos com um dom de fortaleza bem desenvolvido e que possuem método e constância no estudo e na oração, podem meter-se num atoleiro e patinar eternamente. Não conseguem entender o momento em que se deve abandonar a oração vocal ou a oração meditativa e ingressar na oração afetiva. Santo Agostinho lembra que é importante “abandonar a oração vocal quando essa for empecilho para o Amor”. Ou seja, se a oração ou meditação existe para conectar-nos com Deus e amá-Lo, assim que essa “conexão” é estabelecida, faz-se necessário abandonar a leitura, ou oração, ou pensamento e se entregar a esse amor recém-despertado. A isso, como já referido, chama-se oração afetiva. Trata-se de uma passagem do intelecto que agia para entender, para a vontade que, estimulada, se dispõe a amar.

Essa passagem não pode ser rápida demais nem tarde demais. Nem tão rápida que queiramos nos entregar a um amor que nem nasceu ainda, nem se pode deixar de lado o sentimento que nasceu para que “termine-se o que começou”; seja uma leitura, uma oração ou um terço. Temos, para isso, algumas dicas de São Pedro de Alcântara (texto completo aqui) sobre essa meditação que precisa evoluir para uma afeição, ou seja, para um coração inflamado pelo amor e pela presença de Deus.

Primeiro, o verdadeiro mestre interior que nos santifica é o Espírito Santo. Nas segundas moradas, precisamos estar atentos às inspirações e às moções do Espírito quando estamos meditando. Assim, no estudo (ou oração meditativa) deve-se levar adiante o que mais promova a devoção, o amor. Se, por exemplo, ao se propor ler um capítulo inteiro, na primeira linha já se sente uma verdadeira atração e ligação com Deus, abandone-se à leitura do restante do capítulo sem medo e promova esse amor. A oração meditativa se assemelha à fricção de pedras para se acender uma fogueira, uma vez a fogueira acesa (oração afetiva), qual o sentido de se continuar a bater as pedras?

Segundo, como já assinalado, não estudar para saber, mas para amar. A oração meditativa que nos leva nas segundas moradas é muito mais para promover afetos e sentimentos do que para esquadrinhar as coisas com o intelecto. Devemos ter um coração vivo e buscando as coisas do alto. Nem forçar a cabeça tanto que canse o intelecto, nem deixar tão frouxa que fique divagando em milhares de outras coisas.

Terceiro, gastar nisso o máximo de tempo que possa disponibilizar sem negligenciar suas outras obrigações. Afinal, se as paixões não são mais ativas nas segundas moradas, ainda leva tempo para se acalmar a imaginação e aquietar o coração. Desse modo, é melhor um tempo mais longo do que vários tempos breves.

Quarto, não desanime se a devoção não vier. Depois que se fez a experiência desse ardor interior e desejo de união com Deus, é bem frustrante quando se pratica a oração vocal ou meditativa e não se consegue esse “inflamar do coração”. Não recue, não se entristeça, o sacrifício da tentativa vale muito perante Deus. Também começa a nos esclarecer que tudo que é bom provém, necessariamente, de Deus (Tg 1,17) e que não é com nosso esforço exclusivo que conseguimos os graus de oração mais altos, mas por pura bondade de Deus. E como isso é importante! Aqui Deus começa a atuar mais livremente por estarmos sendo mais dóceis e permeáveis à sua ação. Acontece d’Ele inspirar a oração afetiva sem ter-se feito o “pré-trabalho” de se preparar através da leitura ou meditação. Nesse momento, é fundamental acolher essa visita de Deus que nos toca, pois é Cristo que passa! Se não nos deixarmos encontrar quando Ele nos busca, certamente, depois, teremos dificuldades em achá-Lo quando O quisermos encontrar.

Finalmente, lembre-se, tudo isso é para ser vivido, não “decorado”. Se o Espírito Santo tem feito com que você se reconheça nesses estágios e o provoque cada vez mais, perfeito! Se tudo começou a ficar “teórico demais” e, até mesmo, “um pouco estranho”, você precisa se rever. Volte aos textos anteriores da série Caminho Espiritual e as Moradas, situe realmente onde você está na sua vida espiritual e viva com afinco a etapa certa. Jesus falava a todos, mas os sentidos espirituais eram revelados somente aos discípulos (Mt 15,15), pois estes viviam realmente a doutrina, não somente a escutavam. Depois, naturalmente, na vida espiritual não se avança uma morada a cada semana ou a cada três semanas. Existem coisas difíceis a serem resolvidas e vividas. Não desanime, viva intensamente o que você precisa viver neste momento e observe o desenrolar das notícias que recebe das moradas seguintes sem pressão, mas com atenção e desejo de progredir.

No próximo artigo, avaliaremos os principais perigos que prejudicam a vivência espiritual nas segundas moradas e, literalmente, impedem o progresso rumo às terceiras moradas e a uma proximidade ainda maior de Deus.