Devemos fazer um caminho espiritual para nos aproximarmos de Deus
No percurso espiritual de união da alma com Deus, descrito até aqui, vimos como o Senhor, além de atrair a alma a si, purifica-a progressivamente. De fato, nada do que é impuro pode se unir com a perfeita pureza que é Deus. Por outro lado, o caminho é longo, porque Deus não violenta a alma, respeitando a sua liberdade de entrega. Assim, o ser humano precisa ser plenamente dono de si, submetendo suas inclinações e desejos à inteligência e à vontade livres, para que Deus possa guiá-lo com sua graça.
Observando exclusivamente por esse ângulo da purificação da alma, rumo à união com o seu Criador, podemos resumir o caminho percorrido até aqui em algumas etapas. Num primeiro momento, a alma renunciou ao pecado mortal ingressando nas primeiras moradas. Depois, nas próprias primeiras moradas, o cristão precisa confrontar-se com seus vícios e abrir-se para as virtudes infusas. Isso equivale a purificar a vontade de tudo o que é abertamente contrário a Deus, convertendo-se em direção ao verdadeiro e único Senhor. Nas segundas moradas, a purificação da inteligência assume papel principal por meio de um reforço da virtude teologal da fé que, paulatinamente, dá ao homem um novo modo de pensar.
Caminho espiritual
Até aí, executa-se um processo de correção. Nas terceiras moradas, essa correção se aprofunda com a noite ativa dos sentidos, conforme já explicado nesta série Caminho Espiritual e as Moradas. A partir das quartas moradas, Deus toma para si a execução da purificação, culminando na primeira noite passiva, a que São João da Cruz chama de segunda noite da alma, e que tratamos no artigo “Deus se ausenta nas quintas moradas?”.
Com a chegada das sextas moradas e o desposório espiritual, um novo alento se eleva na alma. Afinal, Jesus Cristo assume um noivado com a alma, prometendo desposá-la no tempo oportuno. Mantemos aqui o nome desposório espiritual por dois motivos: primeiro, manter a fidelidade aos textos de Santa Teresa e São João da Cruz, que temos seguido até aqui. Depois, porque o termo “noivado” não tem para nós a conotação definitiva e irrevogável que é necessária aqui.
Quando Jesus se apresenta, convidando a alma ao desposório, Ele garante que, no momento certo, o matrimônio irá se consumar. Desse modo, podemos entender o desposório como já sendo um casamento, mas sem ainda a coabitação, como existia no tempo de Jesus. Ou seja, o convite ao desposório, além de ser uma nova etapa de intimidade, é uma garantia de que ocorrerá o casamento.
Alegria espiritual
O cristão vive um momento de deslumbrante alegria espiritual, o amado finalmente veio dizer à alma: “És toda bela, ó minha amiga, e não há mancha em ti” (Ct 4, 7). No entanto, ainda haverá a mais importante das purificações passivas a serem realizadas: a noite escura da alma.
Segundo a veneranda Isabel de Jesus (1611-1682), mesmo com todo o esforço, “não sabemos como nos mortificar, nem toda mortificação comum pode consegue arrancar todas as raízes dos vícios e das más inclinações”. Deus precisa, portanto, intervir e realizar o que o ser humano não consegue. Assim, a última das purificações começa como uma completa ausência da percepção de Deus, muito mais intensa do que as ocorridas nas quintas moradas.
Nos cânticos, a esposa diz “procurei-o e não o encontrei; chamei-o mas ele não respondeu” (Ct 5,6) e, logo depois, “dizei-lhe que estou enferma de amor” (Ct 5,8). Deus, finalmente se esconde e retira toda a percepção de seus dons espirituais. Atua tão profundamente, que a alma se vê privada do básico, mesmo a fé mais simples. Mais do que se prolongar em descrições, colhamos o testemunho de alguns santos que viveram esse momento:
Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face narra que uma tarde de Páscoa lhe trouxe uma ausência total da fé. De repente, não via mais o céu, mas lhe assaltava a certeza de que, depois da morte, não haveria nada. Infelizmente, o medo de estar blasfemando contra Deus fez a santa não entrar em detalhes sobre o que sentia, mas o pouco que coloca mostra bem essa dolorosa purgação passiva da noite escura. A fé, esperança e caridade, além de serem virtudes teologais, por referir-se a Deus, são também virtudes infusas. Isso quer dizer que, se podemos nos abrir a essas virtudes e ajudá-las a se estabelecerem e crescerem em nós, por outro lado, não podemos as causar. Elas são dons gratuitos e infundidos em nós por Deus.
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A fé
O grande exemplo dessa infusão da fé está narrado no Evangelho ao contar sobre os dois ladrões crucificados lado a lado com Cristo. Se, no princípio, os dois blasfemavam contra o Senhor (Mt 27,44), depois de um tempo, um deles se abriu à fé que Deus infundia e conseguiu compreender exatamente quem era aquele que estava compartilhando a sua sorte (Lc 23,40). O outro, não, permaneceu completamente cego à verdade.
A noite escura da alma é esse período, portanto, que Deus subtrai exteriormente o dom da fé e faz com que a alma sofra de várias maneiras. Santa Teresinha não enxergava mais a eternidade. Santa Teresa de Calcutá narrou em suas cartas que havia “tanta contradição em minha alma, um profundo desejo de Deus, tão profundo que faz mal; um sofrimento contínuo e, com isso, o sentimento de não ser querida por Deus, vazia, sem fé, sem ânimo, sem zelo…”
Semelhante noite dolorosa passou uma carmelita brasileira, a serva de Deus Madre Maria José de Jesus, OCD, filha do historiador Capistrano de Abreu. Em seus últimos meses, narrava uma vívida certeza de que seu destino seria o inferno por causa de suas “inúmeras faltas” e por atribuir a si as faltas alheias. Nada disso estava de acordo com o que narrava um de seus diretores espirituais, Dom Alano Du Noday, OP. Fica evidente uma grande purificação interior em sua correspondência.
Aproximação com Deus
São João da Cruz explica essa purificação da noite escura dizendo que “o que mais faz esta alma angustiada é o claro conhecimento, a seu parecer, de que Deus a abandonou, e que, detestando-a, arrojou-a nas trevas. Na verdade, grave e lastimoso sofrimento é para a alma crer que está abandonada por Deus. Quando, verdadeiramente, a contemplação purificadora aperta a alma, esta sente as sombras e gemidos da morte, e as dores do inferno, de modo vivíssimo, pois se sente sem Deus, castigada e abandonada, e indigna dele que dela está enfadado. O mesmo desamparo e desprezo sente a alma, da parte de todas as criaturas, e especialmente dos amigos” (2 Noite, VI,2-6). Tormento, verdadeiramente indizível, descrito pelo salmista ao clamar: “cercaram-me os gemidos da morte… as dores do inferno me rodearam; a própria morte me prendia em suas redes” (Sl 17, 5-7).
Embora aparentemente cruel, “o fim que Deus tem em vista com essa privação e recolhimento de todos os apetites nele é dar à alma maior fortaleza e capacidade para receber essa forte união de amor divino, que já começa a ser realizada por esta purificação” (2 Noite, XI,3). É por essa forte ação de Deus que este período das sextas moradas (e também das sétimas) é chamado de união transformante.
No próximo artigo, veremos como essa noite escura da alma desemboca no matrimônio espiritual das sétimas moradas e como, finalmente, a alma se encontra no aposento mais interior do castelo: a câmara do rei.