Estes dias que rememoram e celebram a Paixão e Morte de Cristo são de uma extraordinária riqueza. Para usufruí-la convenientemente, faz-se mister uma reflexão sobre as lições que nos advêm do sofrimento redentor. O Concílio Vaticano II, no documento Gaudium et Spes (nºs 37 e 38) contém valiosas considerações sobre a vida corrompida pelo pecado e elevada à perfeição no mistério pascal.
Todos os males que nos afligem tiveram início com o mau uso da liberdade: perturbada a hierarquia de valores e misturando-se o bem com o mal, indivíduos e grupos amiúde olham somente os próprios interesses e não os dos outros (nº 37). Em conseqüência, a fraternidade é violentamente atingida pelo egoísmo, que se faz presente em toda a atividade humana. A única solução é purificá-la pela Cruz e Ressurreição de Cristo, aliás indicada nos episódios celebrados na Semana Santa: Sofrendo a morte por todos nós, pecadores, ensina-nos com o seu exemplo, que deve ser também carregada a cruz colocada pela carne e pelo mundo sobre os ombros daqueles que procuram a paz e a justiça (nº 38), isto é, todos nós que não nos conformamos com o clima reinante em vários setores da sociedade.
A Semana Santa nos confronta com a Paixão e Morte de Jesus, o Inocente. E nos questiona sobre o sentido do sofrimento. Este é uma condição inelutável de cada ser humano, pecador ou não. Trata-se de um componente do nosso ser, ou, ao menos, uma permanente ameaça. A fé cristã não permite uma atitude de simples conformismo passivo, como se fosse resultado de um determinismo trágico. Devemos recordar que Deus colocou sua criatura no mundo para dominá-lo. Portanto, sem diminuir em nada o valor salvífico da dor, o ensinamento de Jesus nos encaminha para o grave dever de minorar o sofrimento, nosso e de nossos irmãos. Jamais o cristão deve cruzar os braços diante o padecimento físico e psíquico.
Jesus exige que aliviemos nosso semelhante, de modo particular o desamparado ou desprotegido: O que tiverdes feito ao mais pequenino é a mim que o fizestes (Mt 25,40).Portanto, o discípulo de Cristo não sofre meramente por sofrer. Ele crê no extraordinário significado, na riqueza que nasce da Redenção, em união aos padecimentos de Cristo. Na ignomínia da Cruz, Cristo morreu em favor dos pecadores, transformou em vitória definitiva e glória eterna o que, aos olhos do mundo, parecia uma derrota.
A Sagrada Escritura nos fala de misteriosa relação entre o sofrer do cristão e a Paixão salvadora de Jesus. Diz São Paulo (2 Cor 4,11): Com efeito, embora nós vivamos, somos sempre entregues à morte, por causa de Jesus, a fim de que, também a vida de Jesus, seja manifestada em nossa carne mortal. E aos Romanos, escreve (8,17): Se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com Ele para também com Ele sermos glorificados. Esta conclusão é princípio fundamental da vida cristã.
Pelo batismo nascemos em Cristo e, pela fé, vivemos com Cristo. Há um íntimo vínculo com nosso Redentor, tanto na ignomínia do Madeiro como no esplendor da Ressurreição. Ele nos convida a vestirmos sua identidade. É São Paulo que nos ensina (Gl 3,27): Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. A Semana Santa se apresenta como uma excelente oportunidade de aprofundarmos estas verdades, de modo particular participando das cerimônias sacras e meditando as conseqüências dessa doutrina. Assim, os critérios velhos de um mundo pecador devem ser abandonados. E paulatinamente assumida a transformação do homem novo, que é moldado pelo Cristo morto e gloriosamente ressuscitado.
Em contraste com essa realidade que nos é oferecida por Jesus, o que vemos é o Senhor, cada dia, sendo crucificado nos comportamentos opostos à sua doutrina. Pessoas que não receberam ou rejeitaram o dom da fé, advogam posições fortemente divergentes à mensagem cristã. Às vezes, raiam à insensatez! Sim, são propostas, projetos de lei apresentados ou defendidos, decisões tomadas que ferem ou deturpam com falsas interpretações a mensagem salvífica de Cristo. Fazem refletir nas palavras do alto da Cruz: Eles não sabem o que dizem, o que fazem! (Lc 23,34).
O mundo de hoje vive em um contraste radical com uma visão cristã. O bem estar, certamente um grande valor para o indivíduo e a sociedade, torna-se cada vez mais o princípio determinante para tudo: a moral, a política e o comportamento, mais e mais pervertidos, por quem vive distanciado de Deus. Felicidade momentânea e passageira não pode ser fim último da ética humana. Para quem não possui uma perspectiva de eternidade é óbvio que o gozo facilmente se torna norma de agir. De tal modo avassalador é esse procedimento formador da opinião pública, que parte do povo aceita como critério principal de vida: o comportamento malsão, prazer, o lucro, a vantagem.
O sofrimento de Cristo não foi apenas um acidente de percurso, mas faz parte de um plano divino para salvar a Humanidade. Por seus valores devemos orientar a nossa existência. No hedonismo, tudo pára no egoísmo, tudo se esgota e cai no abismo do absurdo, do nada. Não guardemos destas palavras um travo de pessimismo. Ao lado dos escravos da droga, há uma multidão de fiéis a Cristo. Convivendo na mesma cidade com os que atacam a Igreja, tripudiando sobre suas falhas humanas, verdadeiras ou caluniosas, há uma multidão inumerável de servidores de Cristo e sua Igreja. Eles, mesmo no silêncio, glorificam o Senhor.
Por isso, sempre após a tragédia no Calvário brilhará a glória da sepultura aberta, a Ressurreição de Jesus. E Ele, somente Ele e seus servidores, cantarão a vitória final, definitiva!
Cardeal Eugênio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro