Como entender essa dupla relação que se dá quando estamos diante da vida moral e da vida afetiva?
A carta de São Paulo aos Gálatas, no capítulo segundo, será o marco de referência. Não existe um teólogo cristão que não tenha relacionado a cruz de Cristo ao mais sublime gesto de amor. Paulo, nesse capítulo, estabelece o critério central do qual podemos partir para compreender o valor intrínseco do amor. Na cruz, não existem evidências nem de um amor romântico nem de um amor emotivo, muito menos racional. “Loucura para muitos” (cf. 1Cor 1,23). Esta sabedoria do amor em Cristo e por Cristo é a que vai conduzir nosso trabalho até o fim.
Devemos aqui retomar o paradoxo viver e morrer. Em outras palavras, o eros vem crucificado para dar, assim, entrada a um “ágape incorruptível”. Um eros superado, porém, não de forma negativa ou angustiante, e sim dialética. Ao morrer o eros, morre o ego. Assim, “eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
A cruz, vista de forma passiva, elimina o amor de Cristo. Ele morre e, ao morrer, doa-se por inteiro, sem eros desordenado ou eros próprio. Se a cruz de Cristo não afetasse o eros, na verdade, não teria sentido falar em salvação. À medida que reconhecemos que o nosso eros vem a ser crucificado, descobrimos também uma das mais relevantes dimensões da moral: passar a ser não um sujeito moral, e sim o sujeito cristão.
Amor e a Cruz
Perez-Soba desenvolve o tema da afetividade conferindo atenção a alguns textos Patrísticos. Primeiro, Inácio de Antioquia, depois, Orígenes e, por último, o Pseudo-Dionísio.
Para Inácio de Antioquia, o eros deve ser compreendido única e exclusivamente desde a dinâmica batismal. A cruz é considerada sinal visível da entrega total, na qual o eros humano encontra a maior realização no próprio Cristo. Disto, emerge o “não sou eu que vivo”.
Orígenes parte da análise do texto do Cântico dos Cânticos, onde se encontra a mais bela de todas as explicações do exercício da caridade. O autor tem como ponto de partida o texto original, que pode ser lido assim: ; o que equivale a dizer: “Deus é amor”28.
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Por último, o Pseudo-Dionísio, que apresenta, até hoje, a mais sublime das expressões que podem descrever o amor na terra: a amabilidade. Precisamente, por essa razão, repetirá insistentemente: “Cristo é amável na Cruz”. Nesta expressão, encontramos toda uma fonte de trabalho que fala do amor como agente motor do ato moral.
O amor encaminha para o bem
O amor não pode fugir do afetivo, que conta com a passividade, não meramente qualidade sensitiva, muito menos emotiva. Trata-se, aqui, de uma passividade que se manifesta no êxtase e que conduz ao amor exclusivamente a ser buscado, ou melhor, tende em direção ao bem, ao que é bom29.
Quando J. J Perez-Soba trata do texto do Pseudo-Dionísio, extrai a bela imagem da ponte entre um ágape “divino”, no qual os termos afetivos mais humanos, que podem ser pregados pelas escrituras sobre Deus, são, a saber, êxtase, zelo e o eros “humano”, que se identifica com Cristo. De tudo isso, obtém-se uma tese: o “meu” adquire um novo significado, pertença. O “meu amor” e o meu “eu” Lhe pertencem. Quase que se poderia chegar a afirmar que, pela sua passividade dentro da estrutura da frase de Gálatas, “eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20), a vida de quem ama é uma vida definitiva.
O amor ágape
O termo eros poderia parecer uma expressão divina, sublime e até metafísica. Contudo, o eros não chega ao ponto do ágape, dar-se pelo outro. O “Filho de Deus que amou e se entregou por mim” (Gl 2,20c). Assim entendido, podemos concluir afirmando que o motor e o objeto de qualquer ato moral é o amor, sendo que Cristo se converte, em certo sentido, no sujeito de todas as ações vitais na vida do cristão.
Podemos constatar que: um dos elementos fortemente ausente na teologia moral atual é o elemento afetivo. Nele,
temos uma fonte inesgotável de compreensão da nossa vida interior em relação ao próprio Cristo. Na hora em que falamos dos dois componentes, êxtase e zelo, como básicos na compreensão da dimensão afetiva, temos de dizer que o êxtase, como passividade do ser na contemplação, permite-nos fazer uma referência direta ao fato de que todas as criaturas se dirigem ao seu Criador porque O amam 30.
Enfim, pressupõe-se a ação de Cristo como a única causa possível para poder falar na pertença a Cristo.
Referências Bibliográficas:
28 Orígenes (In canticum canticorum, Prol, p. 13;70): “Denique memini aliquem sanctorum dixisse Ignatium nomine de Christo: Meus autem amor crucifixus est; nec reprehendi eum pro hoc dignum judico”; Perez-Soba, J. J. La afectividad el bien y Cristo. Siena: Cantagalli, 2008.
29 Messier, M. Pseudo Denys L’Areopagite, op. cit.
Trecho extraído do livro “Família novo sinal dos tempos”, do padre Rafael Solano