Origens incertas, significado profundo
Ainda hoje, não é possível apontar, de forma categórica, a origem do canto gregoriano. É preciso partir da premissa que a expressão “canto gregoriano” possui um significado além da simples referência ao “gênero” musical praticado nos mosteiros pelo mundo e entoado por seus monges. Ela guarda íntima ligação com a forma como as comunidades cristãs primitivas oravam, meditavam e escutavam da Palavra de Deus. Em breve termos, é possível dizer que o canto gregoriano é oração.

Créditos: Imagem Gerada por Inteligência Artificial.
De acordo com a liturgia católica, na Santa Ceia, Jesus repartiu o pão e o vinho a seus apóstolos, e entoou um hino antes de partir para o Monte das Oliveiras. Há uma presunção de que esse hino entoado por Jesus se tratava do que se chama no judaísmo de Hallel, ou seja, Salmos, empregados em louvor e agradecimento a Deus em festividades daquela religião.
Assim, é possível cogitar sobre a existência de semelhanças entre a forma que Jesus cantou na Santa Ceia e a forma que se cantam as salmodias nos tempos atuais, uma vez que, juntamente com a entrada do Antigo Testamento na liturgia cristã, o modo de cantar judaico também tenha sido nela inserido. Aliás, na passagem da Carta de Paulo aos Efésios, encontra-se explicitada a exortação ao canto dos cristãos primitivos, quando assim diz: “E não vos embriagueis com vinho, que é a porta para a devassidão, mas buscai a plenitude do Espírito. Falai uns aos outros com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vosso coração” (Ef. 5, 18-19).
O cristianismo manteve o entoar dos Salmos e o canto gregoriano passou a ser parte integrante da liturgia desde o século IV, recebendo forte influência da cultura e da língua grega. Ele acompanhou o florescimento da liturgia na Igreja que, em seus primórdios, definiu uma forma estabelecida e convencionada de culto em oposição aos diferentes ritos existentes à época do Imperador Constantino.
No fluxo do florescimento de diversas liturgias, muitas delas relacionadas a lugares específicos, surgiram também cantos próprios que acompanhavam essas liturgias, tais como, o galicano, o moçárabe, o beneventano, o ambrosiano e o canto romano antigo. Do entrelaçamento do canto romano antigo com o galicano (romano-franco) surgiu,
então, o entoar que ficaria mais conhecido, em termos históricos, como canto gregoriano. A composição do canto gregoriano tem suas raízes no contexto de um grande movimento da civilização, o qual é chamado de “Renascimento Carolíngeo” pelos historiadores (Saulnier, 2003).
Os demais cantos começaram a ser “suplantados” na medida em que, por intermédio de Carlos Magno, à época Imperador do Sacro Império Romano, liturgia e canto se difundiam por todo o Império, haja vista que ele buscava a unificação político-religiosa de seus domínios.
A evolução estética do canto gregoriano
O canto gregoriano teve diversas fases no tocante à sua estética e, para manter suas características intrínsecas favoráveis à oração, em determinados momentos, precisou de alguns homens inspirados a reformá-lo. Um deles foi Ambrósio de Milão que, além de fazer a mediação entre o Ocidente e o Oriente, compôs um grande número de melodias. O outro foi Gregório (540-640 d. C.), chamado de o Grande ou Magno, sem dúvida, o principal reformador, por ter selecionado e compilado textos manuscritos do século VIII e IX, os quais receberam notação musical, sobretudo, do século X em diante, e que passaram a se chamar canto gregoriano, haja vista se encontrarem dispostos na ordem do calendário litúrgico gregoriano do século VIII.
Como se tem dito: “Foi ele também o organizador do canto gregoriano que teria na Igreja Católica Romana um lugar de maior importância do que o desenvolvido por Ambrósio. Esse canto consistia no uso de um cantochão na parte cantada do culto (Cairns, 2008, p. 146).
Assim, passou a se entender com a designação de canto gregoriano todo o complexo da música florescida durante o medievo no seio da Igreja, das origens do cristianismo até às origens da polifonia: “[…] música vocal monódica, enquadrada nos ritos da liturgia católica (Mila, 1963, p. 21).
A influência decisiva de Gregório
Gregório não só compôs alguns cantos novos, mas ele revisou e reuniu todos os preexistentes, em uma espécie de suma, o Antiphonarius Cento, que foi legado com uma catena de ouro no altar de São Pedro e acabou perdido durante as invasões bárbaras, muito embora cópias dele tenham sido feitas e levadas para outras localidades europeias por pregadores e governantes, como Pepino, o Breve, e Carlos Magno, dispostos a inserirem seus domínios na universalidade do rito romano (Mila, 1963).
Além disso, Gregório aperfeiçoou o ambiente do canto sacro já existente em Roma e constituiu a grande Escola de Canto anexa ao Vaticano (Mila, 1993). Costuma-se contar, ainda, uma lenda que permeia a relação de Gregório com esse repertório. Por ter promovido reformas no culto, ele teria recebido do Espírito Santo, em forma de pomba, a inspiração para compor as melodias, a partir daí chamadas de gregorianas. Essa lenda está ilustrada através de uma imagem do Antifonário de Hartker, do Mosteiro Beneditino de Saint Gallen, na Suíça, no qual se pode observar um escriba sentado à frente do Papa Gregório, este paramentado e posicionado em sua cátedra, redigindo as melodias cantadas por ele. No ombro direito do Pontífice, encontra-se a pomba do Espírito Santo, com o bico bem próximo ao seu ouvido, sugerindo-lhe as melodias.
O propósito espiritual do canto gregoriano
Na realidade, o canto gregoriano não é composto de maneira espontânea, ao sabor da inspiração genial do compositor. Cada peça, seja uma antífona ou um responso, é “centonizada”, vale dizer, é formada por fórmulas já prontas que, escolhidas em função do modo da peça, costuram-se umas nas outras por recitativos de ligação, com ornamentos no grave ou no agudo. Para apreciar a disposição muito estruturada da modalidade gregoriana, é necessário compreender bem a dinâmica da salmodia.
No fundo, uma antífona é isto: um quadro, um módulo no qual flui o recitativo salmódico. Um salmo, na liturgia cristã, não se canta isolado, não se executa independentemente. É a antífona, no plano doutrinário, que lhe confere um significado neotestamentário, mas é também a antífona que o introduz numa das oito partes preestabelecidas que melhor lhe convém.
No sistema diatônico da monodia gregoriana – as teclas brancas do piano – há somente quatro maneiras de terminar um canto: em ré (ou lá, por transposição), em mi (ou si), em fá (ou dó), ou, em sol (Massin; Massin, 1997). Admite-se que o ritmo gregoriano, há tempos, é um ritmo oratório mesmo, quer dizer, que se conta como se fora a declamação de um discurso: prótase – apódose. Em princípio, as sílabas todas iguais, mas que a inteligência decida na prática, porquanto se sabe que certas sílabas têm articulação mais longa, mais difícil do que outras. Por outro
lado, a fonação difere de uma região para outra.
Quando se compreende bem o Micrologus, em seu capítulo 15, de Guido d’Arezzo, é possível asseverar que as cadências e semicadências dos cantos em prosa é que eram medidas, mas não segundo a “medida” (o compasso) praticada na polifonia desde 1180. Nesse domínio, é sempre bom lembrar que se está diante de um canto sacro extraído dos livros sagrados da Bíblia, e que não são as tresquiálteras, as síncopes, as precipitações intempestivas do movimento que irão conferir a serenidade necessária ao canto litúrgico, o qual deve, segundo os regulamentos da função de chantre, edificar os ouvintes. Em breve palavras: “O canto deve elevá-los em direção ao espiritual, ao invés de abaixar-se ao nível dos laicos cantus” (Massin; Massin, 1997, p. 150).
O canto gregoriano é dotado de inúmeras virtudes que dizem respeito tanto ao âmbito das impressões subjetivas, quanto ao que concerne a fatos neuropsicológicos. Pelo fato de a música possuir a linguagem privilegiada da oração, o canto gregoriano, além de resumir a experiência poética de muitas gerações desde o antigo Israel, tem a capacidade e a força de encantar e afastar o coração das preocupações. Sua melodia percorre circuitos mentais conectados à memória que, de uma maneira “terapêutica”, atuam em cantores e ouvintes desse repertório (Baroffio; Kim, 2003).
Do ponto de vista técnico-musical, o canto gregoriano se caracteriza por ser monódico (ter apenas uma linha melódica), silábico (uma nota para cada sílaba), semi-ornado (neumático, com poucas notas em cada sílaba) ou melismático (várias notas por sílaba), escrito e cantado em latim e “a cappella” (sem acompanhamento instrumental) ou acompanhado por órgão. Outrossim, existem as chamadas melodias “Inspiradas no Gregoriano” que, obedecidas as características mencionadas, se valem dos textos na língua própria de cada país, e não do latim, para suas composições.
Leia mais:
.:São Gregório Magno, um homem da caridade
.:O que marca a vida de todo cristão?
.:Constantino, o Grande: um imperador tolerante e influente na história da Igreja
Ademais, já escreveu o Papa Pio X, em seu Motu Proprio Tra le Sollecitudini, de 1903, sobre a necessidade de revestir de adequadas melodias o texto litúrgico proposto à consideração dos fiéis, a fim de que eles sejam mais estimulados à piedade e melhor preparados para receberem os frutos da graça, próprios da celebração dos sagrados mistérios. E o Papa Pio XII, em sua Carta Encíclica Musicae Sacrae Disciplina, de 1955, chancelou o serviço que a música presta à liturgia, promovendo a remoção de tudo o que destoe do culto divino ou impeça os fiéis de se elevarem a Deus.
O canto gregoriano é guiado, sobretudo, pela primazia do texto, vale dizer, não há acentos regulares oriundos da métrica musical, sobressaindo a métrica e a acentuação do texto que orienta quem conduz os caminhos pelos quais a melodia deve seguir. Tal característica favorece também que as palavras do texto tenham sua semântica preservada, haja vista que, mesmo de modo involuntário, ênfases equivocadas em sua leitura podem desvirtuar o sentido real escrito.
É preciso levar em consideração que, por força da influência grega, o canto gregoriano não está estruturado em tonalidades maiores ou menores, como as músicas compostas no Ocidente, a partir de meados do século XVII. Sua estruturação segue o que se chama de modos gregos: em cada modo, a organização das notas da escala se distribui de uma maneira distinta da outra, criando diferentes sentimentos e impressões que melhor se adaptem ao texto composto em forma de música.
Marcius Tadeu Maciel Nahur
Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.
Referências
BAROFFIO, Giacomo; KIM, Anastasia Eun Ju. Cantemus Domino Gloriose –
introduzione al canto gregoriano. Disponível em:
https://books.google.com.br/books/about/Cantemus_Domino_gloriose.html?id=HOYX
AQAAIAAJ&redir_esc=y. Acesso em: 19 abr. 2025. 210 p.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Samuel Martins Barbosa et al.
São Paulo: Paulinas, 1981. 1663 p.
CAIRNS, Earle Edwin. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja
cristã. Tradução de Israel Belo de Azevedo e Valdemar Kroker. 3. ed. São Paulo: Vida
Nova, 2008. 671 p.
MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte. História da Música Ocidental. Tradução de
Ângela Ramalho Viana, Carlos Sussekind e Maria Teresa Resende Costa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 1255 p.
MILA, Massimo. Breve storia dela musica. Torino: Einaudi, 1963. 484 p.
PIO X. Motu Proprio Tra le Sollecitudini (1903). Disponível em:
https://www.vatican.va/content/pius-x/pt/motu_proprio/documents/hf_p-x_motu-
proprio_19031122_sollecitudini.html. Acesso em: 19 abr. 2025.
PIO XII. Carta Encíclica Musicae Sacrae Disciplina (1955). Disponível em:
https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-
xii_enc_25121955_musicae-sacrae.html. Acesso em: 19 abr. 2025.
SAULNIER, Daniel. Gregorian chant: a guide to the history and liturgy. Translated by
Mary Berry. Brewster: Paraclete Press, 2003. 147 p.