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A perseverança é a virtude dos santos

Certamente as histórias de maior apelo popular na nossa religião, aquelas que causam arrepios e algumas vezes nos levam até as lágrimas são as narrativas de martírio. Santa Inês, que para preservar-se pura para seu Amado, Cristo, passou pela fogueira e morreu decapitada; Santo Estevão, o primeiro mártir, morto a pedradas; São Maximiliano Kolbe, que se ofereceu para morrer de fome no campo de concentração de Auschwitz para salvar um jovem que tinha esposa e filhos; os incontáveis cristãos dos primeiros séculos jogados às feras para cruel divertimento dos romanos. Esses guerreiros da fé nos cativam porque derramaram o sangue por amor a Cristo e porque de alguma forma nos parecem “supercristãos”, inalcançáveis nos seus feitos de fé. Quantos de nós, ao refletirmos sobre a atitude de algum desses mártires, pensamos algo como: “Eu sou muito covarde para fazer o que eles fizeram. Tenho muito amor à minha própria vida para morrer por não negar Cristo. Creio que eu não conseguiria fazer isso”. O martírio é, naturalmente, visto por muitos como a apoteose da fé, a representação máxima de uma vida cristã exemplar.

Eis que Jorge Luis Borges, o maior escritor argentino, escreve, num dos seus contos1:

“Morrer por uma religião é mais simples que vivê-la na plenitude; batalhar em Éfeso
contra as feras é menos duro (milhares de mártires obscuros o fizeram) que ser Paulo, servo de
Jesus Cristo; um ato é menos que todas as horas de um homem”.

A perseverança é a virtude dos santos

Foto ilustrativa: PeteWill by Getty Images

Como os santos, você tem capacidade de perseverar?

Longe de querer diminuir os méritos dos nossos mártires, peço a você, leitor, que reflita se essa citação de um escritor mundano (mas genial) está longe da verdade. Ser mártir certamente não é fácil e não é possível morrer por Cristo sem uma profunda experiência com o amor de Deus. Mas “um ato é menos que todas as horas de um homem”, e um impulso da Graça pode ter levado muitos cristãos que nem viviam uma vida tão exemplar ao ato de coragem supremo que é o martírio. No final das contas, é um ato, um só, e as horas do homem, repito, são muitas. Voltando à citação de Borges, quão dura foi a vida de Paulo? O próprio apóstolo faz uma espécie de inventário das agruras que enfrentou pelo nome de Cristo, ao longo dos cerca de trinta anos de vida missionária: “Recebi dos judeus cinco quarentenas de açoites menos um; três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo; em viagens, muitas vezes; em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos dos da minha nação, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre os falsos irmãos; em trabalhos e fadiga, em vigílias, muitas vezes, em fome e
sede, em jejum, muitas vezes, em frio e nudez”2. Quantos martírios ocultos Paulo não enfrentou até chegar ao seu martírio sangrento e definitivo? O que manteve Paulo fiel ao longo de todos esses anos, o que o fez capaz de renovar o seu sim a Jesus dia após dia foi a virtude da perseverança, que ele próprio recomendou a Timóteo: “Persevera nestas coisas. Se isto fizeres, tu te salvarás a ti mesmo e aos que te ouvirem”3.

A rotina nos cansa, exaure nossas forças, nosso ardor, nossa paixão. Quantos de nós começamos projetos que abandonamos depois de um tempo? Dietas, exercícios, práticas de oração. Quantas pessoas conhecemos que eram profundamente envolvidas com a evangelização, mas que foram perdendo o ânimo ao longo dos anos e hoje mal pisam numa igreja? “Começar é de todos; perseverar, de santos”, nos ensina São Josemaria Escrivá4. Talvez por isso tenhamos uma inclinação maior para grandes feitos de fé, desprezando, de certa forma, o ordinário, o comum. O fato é que nós, em nossa maldade, muitas vezes subvertemos a ideia do martírio. Se não posso ser mártir, ao menos posso buscar uma emoção profunda e marcante, um grande feito, uma experiência inesquecível. É aquela pessoa que só participa da Santa Missa quando é a “Missa Especial de Cura e Libertação” que acontece naquela paróquia específica ou naquela comunidade, ou que só vai ao grupo de oração quando tem um pregador de fora. Ou aquele outro que encontra pessoalmente um sacerdote conhecido nas mídias e implora para que ele ouça sua confissão, apesar de ter passado os últimos meses sem buscar a confissão na sua paróquia. E quando consegue se confessar com um sacerdote assim diz experimentar “algo novo, totalmente diferente, transformador!”, ainda que, ao voltar a pecar, não tenha ânimo para buscar o seu humilde pároco para se reconciliar com Deus. Podemos pensar ainda no músico que só vai à Missa se estiver na escala para tocar, ou na família que só se reúne para rezar o terço se for convidada para compartilhar a foto no Instagram da paróquia, mas no dia a dia esquece de cultivar a intimidade com Nossa Senhora. Todas essas pessoas têm vontade de agradar a Deus, mas falta-lhes perseverança, por isso vivem de atos isolados e empolgantes que na maioria das vezes pouco lhes acrescenta à espiritualidade.

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Peça a graça da perseverança, a exemplo de Nossa Senhora

Imploremos a Deus a graça de perseverarmos na fé. “Quantos se deixariam cravar numa cruz perante o olhar atônito de milhares de espectadores, e não sabem sofrer cristãmente as alfinetadas de cada dia! – Pensa então no que será mais heróico”, nos ensina São Josemaria Escrivá5. O amor de Santa Teresa d’Ávila por Cristo não foi menor que o dos mártires, ainda que tenha passado quarenta e sete anos encerrada num mosteiro, muito dos quais lidando com o silêncio de Deus. Quantos milhares de alfinetadas suportou Santa Teresa em quase meio século de vida religiosa! Mesmo tendo enfrentado tribulações “invisíveis”, para muitos de nós “sem graça”, ela perseverou. Há radicalidade em derramar o próprio sangue por Jesus, mas não é menos radical quem dedica cada pequeno ato de sua vida ao Senhor, levantando-se depois de cada queda, aceitando cada provação, pequena ou grande. Não busque a Deus somente nos grandes eventos e nos grandes encontros – sim, Ele também está lá, mas está no Santo Terço rezado em família quando ninguém vê, na insistência em buscar confessar-se sempre que peca, na fidelidade ano após ano à Santa Missa, mesmo que o padre não seja um grande pregador e ainda que a senhorinha que canta seja totalmente desafinada. Iluminam-nos numerosos exemplos de santos que não foram convidados por Deus ao martírio cruento, mas passaram décadas de sua vida vivendo o martírio incruento, como disse o Papa Emérito Bento XVI6, dando um testemunho silencioso e heroico de amor a Cristo e ao próximo. São Pio de Pietrelcina, São João Maria Vianney, São João Paulo II ocupam hoje os altares, mas quantos pais e mães de família, avôs e avós que combateram o bom combate, terminaram a corrida, guardaram a fé7, fazendo todos os dias a mesma oração ao acordar, a mesma oração ao dormir, desfiando intermináveis contas de terços ao longo de décadas, ajoelhando-se em adoração cada vez que Jesus Eucarístico é elevado no altar. E fizeram tudo isso, perseverando na sua relação com Deus, enquanto tinham contas a pagar, arroz para cozinhar, filhos rebeldes para suportar, netos para criar porque os pais não deram conta, doenças para enfrentar.

Que graça é ser mártir, imitar Cristo até a morte. Não há santo que não tenha desejado, de uma forma ou de outra, unir-se a Cristo morrendo por Ele. Mas a sabedoria de Deus é insondável e infinita, e Ele sabe o caminho que cada um deve percorrer para alcançar a santidade. Dimas, o bom ladrão, foi o primeiro a entrar no céu. Não precisou mais do que um ato de fé nos derradeiros instantes da sua vida, ao reconhecer-se pecador e reconhecer Jesus como Rei. Paulo, como sabemos, viveu décadas de tribulações e tanto cresceu no amor a Cristo que chegou ao ponto de exclamar que para ele, “viver é Cristo e morrer é lucro”8. Morreu, portanto, no lucro, já que seu sangue foi derramado pelo Nome que está acima de todo Nome. São João, por sua vez, apesar de ter vivido nas mesmas circunstâncias de Paulo, teve uma vida excepcionalmente longa para os padrões da época, morrendo de forma natural aos 94 anos. Não sei se terei a mesma oportunidade de São Dimas, de imediatamente antes da minha morte experimentar uma conversão plena e perfeita. Tampouco sei se terei vida longa como São João. O que sei é que preciso da graça de Deus para perseverar na fé até que o Senhor venha ou até que eu vá me encontrar com Ele. Com São Pio de Pietrelcina, peçamos a Deus a graça de imitar o exemplo de perseverança da Santa Mãe de Deus: “Nossa Senhora recebeu pela inefável bondade de Jesus a força de suportar até o fim as provações do seu amor. Espero que você também possa encontrar a força de perseverar com o Senhor até o calvário”.

Referências:

1 Deutsches Requiem, presente em “O Aleph”.
2 2 Coríntios 11, 24-27.
3 1 Timóteo 4, 16.
4 Caminho, 983.

5 Caminho, 204.
6 Angelus do dia 28 de outubro de 2007.
7 2 Timóteo 4, 7.
8 Filipenses 1, 21.

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