🤔 Reflexão

Sede de viver

O valor da vida

Na contramão de qualquer impulso na direção do autoextermínio, há de se cultivar o desejo de viver. As estatísticas revelam grave drama da humanidade: muitos desistem de viver, uma realidade que pede, de todos, uma zelosa atitude voltada à promoção do dom da vida – dom precioso recebido de Deus para se tornar oferta pelo bem do semelhante. Não é tarefa fácil, considerados os desafios do mundo contemporâneo.

Caminhar na santidade, o início do tempo comum

Crédito: Mny-Jhee / GettyImages

Importa reconhecer que, antes do estágio fatídico e trágico do autoextermínio, quem abre mão do dom de viver trilhou caminho sombrio. Essa constatação exige que providências sejam tomadas para resgatar aqueles que estão na direção do precipício da morte. O autoextermínio faz ecoar um luto silencioso e dolorido, um vácuo familiar e comunitário intransponível.

As causas que levam ao abandono do dom de viver são analisadas por especialistas de diferentes áreas. Mas ainda permanece um mistério o conjunto de etapas que precedem esse ato extremo. Entre as precauções para se evitar processos de deterioração da existência humana está o adequado cuidado com a espiritualidade. Um zelo ainda mais importante neste contexto de tantos pesos produzidos pelas disputas, consumismos e exigências.

As circunstâncias e injunções cotidianas podem ser existencialmente exigentes e desgastantes: há sempre o risco de se perder a unidade interior, que precisa ser intocável, pois é núcleo que sustenta a força e a sabedoria essenciais ao viver.

O processo de deterioração dessa unidade torna-se mais acelerado quando se alicerça o próprio valor nos ganhos e nos títulos, nos reconhecimentos e nos efêmeros momentos de glórias, seguidos de um vazio desafiador.  Esse vazio é que leva muitos a não conseguir dar conta da hora e do dia seguinte.

Quando o cansaço rouba o sentido

Um vazio que causa mutilações internas e incapacita a pessoa que, cada vez mais, passa a buscar referências no que lhe é externo para tentar enxergar o próprio valor. Para reconhecer o próprio valor não se pode tornar-se refém do que está do lado de fora, nem do que está na própria interioridade, deixando-se dominar por inquietações, desconfortos, justamente por não alcançar autoconhecimento.

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Valorizar a si mesmo não pode estar condicionado ao que está do lado de fora ou na própria mente, é preciso não se deixar controlar pelos outros nem se aprisionar nas fantasias para superar impulsos que possam levar ao autoextermínio.

Deixar-se dominar pelas injunções e pessoas que integram o cotidiano ou se apegar às fantasias, se não constituírem caminho para o precipício, nublam o viver, deixando-o sem graça, adoecendo-o. Há de se admitir o cansaço que se abate sobre o peregrino de cada dia.

Esse cansaço, engendrado por hiperatividade, festas, encontros superficiais e outras vicissitudes, tira o fôlego e precisa ser tratado com silêncio, retiro, com o cultivo primordial da sede de Deus. Desconsiderar a sede de Deus compromete a existência, impondo desqualificação à cidadania, obscurecendo a alegria do viver e multiplicando as ilusões cristalizadas em decepções insuportáveis.

O cansaço, sem a sede de Deus, leva à deterioração da unidade interior. Por isso é preciso sentar-se à beira do próprio poço, envolvido por um clima meditativo e orante, desafiado a buscar algo a mais: aproximar-se de Deus, sabendo que Ele também deseja se encontrar com cada ser humano.

Orar é reviver

O ser humano torna-se mais forte para se livrar dos insuportáveis pesos que “amarelam” o seu viver quando se abre ao encontro com Deus. Aqueles que se deixam encontrar por Deus revigoram a sua sede de viver. Por isso, aprender a orar é indispensável, dedicando-se a uma escuta do transcendente que faz brotar singular  sabedoria – aquela que dá sentido até mesmo ao sofrimento, possibilitando superar decepções, ilusões, para gerar o vigor da paz interior.

A condição de aprendiz que busca, permanentemente, aprofundar-se no caminho da oração promove a humildade revelada no desejo permanente de reconciliação consigo mesmo, com o próximo, com o meio ambiente e com Deus.

Espiritualidade é uma resposta à desesperança que leva ao autoextermínio, com força de remédio, articulada com circunstâncias familiares e o vigor no enfrentamento das dinâmicas culturais contemporâneas, também causadoras de desgastes que levam à perda da inteireza psicoemocional. Mas não basta uma  espiritualidade qualquer.

A esperança do viver em Deus

Sublinhe-se a diferença qualitativa da espiritualidade centrada na experiência de um encontro pessoal com Cristo Jesus. Encontro com propriedades para gerar humanização, impulsionar o autoconhecimento, corrigir descompassos a exemplo dos instintos de violência, as tendências a isolamentos suicidas, distanciamento da experiência altruísta de encontrar gosto e sentido ao se praticar o bem e de ser bom para o próximo. Trata-se de uma espiritualidade que ilumina o núcleo da própria identidade, curando feridas, firmando passos.

O encontro com Jesus Cristo se torna uma experiência que alarga o horizonte, ilumina o caminho e garante um veio de esperança essencial à sustentação do sentido de viver, e viver não para si mesmo, nem enjaulado em interesses meramente individuais. Um viver edificado em uma identidade humanística com reserva suficiente para sustentar a vida, o vigor para batalhar pelo bem maior e comum.

A sede de viver cresce e, ao mesmo tempo, é saciada quando se faz a vida mover-se pela energia do amor e pelo sentido de plenitude multiplicado pelo gosto de ser bom. A espiritualidade ensina que fazer o bem é a razão que alimenta a sede de viver.


Dom Walmor Oliveira de Azevedo

O Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, é doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atual membro da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para as Igrejas Orientais. No Brasil, é bispo referencial para os fiéis católicos de Rito Oriental. http://www.arquidiocesebh.org.br