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As preocupações religiosas ocupavam uma posição relevante na especulação filosófica grega. Converter-se ao cristianismo era, com frequência, “[…] passar de uma filosofia animada por um espírito religioso a uma religião capaz de vistas filosóficas. Para o jovem Justino, a filosofia era ‘o que nos conduz a Deus e a ele nos une’” (Gilson, 1995, p.3).
Justino alinhou-se, a princípio, com os estoicos, porém, como se sabe, eles ignoravam Deus e chegaram a lhe dizer que não era necessário conhecê-lo. Em seguida, buscou aproximação com os peripatéticos. Um mestre peripatético cobrou para ensiná-lo, o que levou Justino a concluir que não estava realmente diante de um filósofo. Então, ele procurou um mestre pitagórico, porém, foi-lhe exigido que soubesse primeiro música, astronomia e geometria. Um melhor êxito esperava Justino junto aos seguidores de Platão, com os quais ele aprendeu que havia a inteligência das coisas corpóreas, mas também era indispensável alcançar a contemplação das Ideias, o que somente o sábio realizava por meio de atividade espiritual. Justino esperava ter acesso a Deus pelo platonismo.
O Encontro que transformou Justino
Era uma religião natural que Justino buscava na filosofia. Assim, não é de estranhar que, mais tarde, ele trocaria o platonismo por outra religião. Em um retiro solitário, ele se encontrou com um ancião que o questionou sobre Deus e sobre a alma.
Respondeu aos questionamentos com base no platonismo e o ancião apontou-lhe certas incoerências: se as almas que provêm de Deus devem esquecê-lo em seguida, sua felicidade não é mais que miséria, e se as que não são dignas de vê-Lo permanecem vinculadas a corpos em castigo por sua indignidade, ignorando que estão sendo punidas, então, essa punição é completamente inútil.
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Para essa retorsão, Justino esboçou uma justificativa, ancorada na obra Timeu, de Platão, mas, de imediato, o ancião disse que não se preocupava com o Timeu e a doutrina da platônica imortalidade da alma. A resposta do ancião ainda foi mais aprofundada, tendo sido dito o seguinte: se a alma é imortalmente viva, não é porque ele é vida, como Platão apregoara, e sim porque a recebe, como ensinam os cristãos.
Na época, essa era linha divisória entre platonismo e cristianismo (Gilson, 1995). Justino quis saber onde poderia ler essa doutrina, obtendo como resposta que não era a doutrina de nenhum filósofo, mas das Sagradas Escrituras. Por isso, o próprio Justino declarou o seguinte em seu texto Diálogo com Trífon: “Um fogo acendeu-se subitamente em minha alma, fui tomado de amor pelos profetas e por aqueles homens amigos de Cristo; e, refletindo eu mesmo sobre todas aquelas palavras, descobri que essa filosofia era a única segura e proveitosa”.
Esse trecho do Diálogo com Trífon é de importância crucial, sobretudo, para mostrar como a religião cristã assimilou, de pronto, um domínio reivindicado até então pelos filósofos. É que o cristianismo oferecia uma nova solução para problemas que os próprios filósofos tinham suscitado. Uma religião baseada na fé numa revelação divina mostrava-se capaz de resolver os problemas filosóficos melhor que a própria filosofia.
Ao se admitir que Deus revelou a verdade apenas através de Jesus Cristo, parece que aqueles que o precederam não foram culpados de tê-la ignorado. Justino lançou essa questão em seu texto intitulado Primeira Apologia e se empenhou em definir a natureza da revelação cristã e seu lugar na história da humanidade. O princípio de solução, proposto por Justino, vem do Evangelho de João, quando declara que o Verbo ilumina todo homem que vem a este mundo e, assim, todo o gênero humano participa do Verbo.
Trata-se de uma revelação universal do Verbo divino, anterior àquela que se realizou quando o mesmo Verbo se fez carne. Essa tese será reexposta por Justino em termos tomados de empréstimo do estoicismo, ao dizer, em sua Segunda Apologia, que a verdade do Verbo é como uma “razão seminal”, ou seja, um germe, do qual cada homem recebeu uma parcela. Desse modo, pode-se afirmar que houve cristãos e anticristãos, méritos e deméritos, antes mesmo de Cristo. Ora, o Verbo é Cristo. Assim, conclui Justino em nome dos cristãos: “Tudo o que foi dito de verdadeiro é nosso”. Nesse sentido, “[…] todos os filósofos pagãos que, tendo pensado o verdadeiro, tiveram germes dessa verdade plena que a revelação cristã nos oferece no estado perfeito” (Gilson, 1995, p. 6).
No tocante ao homem, Justino somente considerou a alma. De fato, como lhe ensinara o ancião, a quem devia sua conversão, a alma não é vida, pois ela a recebe de Deus. Na concepção de Justino, a alma participa da vida, porque Deus quer que tenha a vida (Reale; Antiseri,2017). E, seja como for, Justino não tem dúvida alguma de que a alma deve ser recompensada ou punida na outra vida de acordo com seus méritos ou seus deméritos. A propósito, já que sua vontade é livre, e não submetida ao destino como pretendiam ensinar os estoicos, o homem é responsável por seus atos. Com isso, Justino insistiu, de maneira enfática, sobre o livre-arbítrio como fundamento necessário e suficiente do mérito e do demérito para a alma humana.
Justino se apresenta como o primeiro daqueles para quem a revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação mais ampla e, não obstante, cristã a seu modo, posto que toda revelação vem do Verbo e que Cristo é o Verbo encarnado. Ele é considerado uma espécie de ancestral da família espiritual cristã, da qual o cristianismo largamente aberto reivindica como seus todo o verdadeiro e todo o bem, que ele se dedica a descobrir para assimilar (Gilson, 1995). Justino foi um membro dessa família e derramou seu sangue por Cristo, garantindo plenamente a autenticidade de um cristianismo desse tipo que “[…] repercute sobre testemunhos menos puros que o seu” (Gilson, 1995, p. 8).
Entre aqueles que tinham testemunhado Cristo até o martírio, Justino gostava de mencionar Sócrates, condenado e morto por instigação demoníaca, devido a seu amor indeclinável pela verdade, uma vez que Cristo é a verdade.
1 O Pastor de Hermas é uma obra literária cristã do século II d.C. e considerada como parte do cânon bíblico por alguns dos Padres da Igreja no período inicial do Cristianismo e teve grande autoridade entre os séculos II e IV d.C.. Juntamente com alguns apócrifos, o texto estava encadernado juntamente com o Novo Testamento no Codex Sinaiticus e também estava listada entre os Atos dos Apóstolos e os Atos de Paulo na lista esticométrica do Codex Claromontanus. Embora os primeiros cristãos devotassem grande respeito a O Pastor de Hermas, eles não o consideravam no mesmo nível que os textos chamados “divinos” e sim como uma obra apócrifa.
Marcius Tadeu Maciel Nahur
Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.
Referências
GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 949 p.
JUSTINO. Primeira Apologia. chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://centroculturalcampogrande.pt/patristica/pdfs/justino.roma.trifao.pdf. Acesso em: 31 mai. 2025.
JUSTINO. Segunda Apologia chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://centroculturalcampogrande.pt/patristica/pdfs/justino.roma.trifao.pdf. Acesso em: 31 mai. 2025.
JUSTINO. Diálogo com Trífon. chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://centroculturalcampogrande.pt/patristica/pdfs/justino.roma.trifao.pdf. Acesso em: 31 mai. 2025.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Tradução de José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017. v. I. 697 p.