No artigo passado, terminamos com o relato da Edith sobre o afastamento de sua família quando começou a frequentar a universidade. Esse afastamento não se deu apenas com relação ao contato físico, pelo fato de passar a maior parte do dia nas salas de aula e nos grupos em que havia se inscrito, mas também ocorreu na dimensão psíquica: emocionalmente, a mãe e os irmãos passaram a contar menos para ela.
Sabemos que isso não aconteceu só com Edith, mas provavelmente todos nós já passamos por esse momento, ou passaremos, se ainda somos bem jovens. É algo que faz parte desse momento na formação de vida humana, quando se está buscando um maior autoconhecimento e autoafirmação dos próprios valores, para se preparar para a vida adulta, com maiores responsabilidades1. A família de Edith sabia respeitar as transformações que estavam acontecendo na filha caçula, e o que os deixava mais tranquilos era o fato de Edith e Erna estarem sempre juntas em suas novas experiências. Elas andavam com suas “almas-irmãs”: Rose Guttman, Lilli Platau (com quem formavam o “trevo de quatro folhas”) e Hans Biberstein, que depois se tornou o esposo de Erna.
A mãe de Edith conhecia bem as amizades das duas filhas, assim como as suas famílias, e sabia que compartilhavam de valores semelhantes aos seus. Ela assumia uma atitude muito construtiva: estava atenta e disponível, mas respeitava a necessidade dos filhos jovens de experimentarem uma maior autonomia, para serem capazes de descobrir a própria singularidade, a “nota pessoal” de cada um. Mas apesar de todos esses cuidados, sabe-se que os jovens, mesmo com o apoio atento dos pais, se tornam mais suscetíveis às influências do meio, especialmente da cultura em que estão inseridos. Edith relata um episódio em que relata a influência da cultura, tanto negativa quanto positiva, nesse momento de sua vida.
Uma crise de depressão durante a juventude
Edith Stein narra em seus escritos autobiográfico2 que, em 1912, teve uma crise de depressão ao ler o romance Helmut Harringa: Uma história de nossa época. Nesse romance, o irmão do herói se suicida e o protagonista principal cai em profunda depressão, da qual nada poderia tirá-lo, senão um hino composto por Lutero (salmo 46). Edith se identifica profundamente com o herói e ela também se deprime (EA, p. 268). Adoece em sua dimensão psíquica, que também influencia a sua dimensão corpórea, diminuindo a sua força vital e levando-a a experimentar uma profunda depressão ocasionada pela leitura de um romance. Ela adoeceu psiquicamente, e ao reconhecer esse seu adoecimento, se torna capaz de penetrar mais profundamente em sua dimensão interior e analisar-se de modo reflexivo, responsável e livre3.
Edith aprende com essa sua experiência, visto que a relata em seus escritos autobiográficos de 1933. Mas não só neles, pois quando se torna, entre 1928 e 1933, uma conferencista renomada, aborda esse tema da influência da cultura, especialmente da literatura, na formação dos jovens4. Desde abril de 1923, quando havia percebido que não conseguiria se tornar professora de filosofia em uma universidade por ser mulher, Edith passa a lecionar latim e literatura alemã no Colégio das irmãs dominicanas de Espira. Daí seu interesse pelas questões pedagógicas, que, para ela, não a distanciavam de sua formação filosófica fenomenológica. Veremos isso nos artigos seguintes.
Relato de Edith
Retomando o relato de Edith, ela explica o que aconteceu ao ler o romance de Harringa:
“Ele descrevia com as cores as mais nítidas a vida estudantil e seu
deserto de vínculos humanos, deserto este que inicia as pessoas
absurdamente no consumo de álcool e em outros descaminhos morais
daí resultantes. Aquilo me encheu de um desgosto tal, que não fiquei
bem por semanas. Perdera toda a confiança nos seres humanos que eu
cruzava a cada dia. Ia e vinha com a impressão de estar esmagada por
um peso enorme e não podia reencontrar a minha alegria” (EA, p. 269).
Interessante saber de que modo a sua depressão foi curada, pois esse fato nos mostra a influência, tanto negativa quanto positiva, da cultura5. Edith relata que foi curada da depressão, que tinha ocasionado um afastamento emocional até dos próprios amigos, quando ouviu, numa festa celebrada em sua cidade em honra do compositor Bach, uma cantata composta por ele a partir do mesmo hino de Lutero que curou o herói do romance. Ela readquire confiança em si mesma e no seu pequeno grupo de amigos.
“Foi então que o mal do século que eu sentia desapareceu de um só
golpe. Decerto é possível que o mundo seja mau, mas me dei conta de
que, se eu mesma e o pequeno grupo de amigos em quem eu podia
confiar empregássemos todas as nossas forças, então terminaríamos
com todos os “diabos”” (EA, p. 269).
O amor que Edith recebe de sua família e dos seus amigos falou mais forte. Lhe deu condições para enfrentar a própria depressão e voltar a acreditar na bondade, que também existe, junto com o mal, em todo ser humano.
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Além disso, a postura de Edith nesse relato revela um outro elemento muito importante: apesar de sua origem judaica e mesmo vivenciando um período de forte agnosticismo, ela considera todas essas manifestações culturais, inclusive vinculadas à religião, como fazendo parte da cultura de um povo. Por isso, não podemos dizer que Edith vivenciou um “ateísmo”, a partir de seus 14 anos, pois ela não considera a religião como um mal, combatendo-a. Ela apenas não reconhece nela um valor, uma justificação que pudesse ser universal, verdadeira. Assim, podemos chamá-la de “agnóstica”, cuja palavra vem do grego: o prefixo “ag”, significa “não”, e “gnose” é “conhecimento”. Se é agnóstico com relação a algo quando não se acredita em algo por não conseguir pensá-lo, conhecê-lo, compreendê-lo. Edith tinha conhecido, por meio de sua mãe, o Deus da tradição judaica, percebido como um Ser supremo e distante, que sequer pode ser nomeado. Coerente com o seu modo de ver o mundo, ela nega a existência desse Deus por não ser capaz de pensá-lo e reconhecê-lo enquanto tal. Acredito que, nesse estado, se encontram muitas pessoas com quem convivemos, e Edith pode nos ajudar, com sua vida e pensamento, a dialogar com eles e conduzi-los por um caminho mais verdadeiro e aberto, menos preconceituoso, com relação ao fenômeno religioso em geral.
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Referências:
1Adair Aparecida Sberga, em seu livro A formação da pessoa humana em Edith Stein: um percurso de conhecimento do núcleo interior. São Paulo: Paulus, 2014. (Coleção filosofia em questão), aborda esse tema e explicita como Edith refletiu e escreveu sobre esse processo de formação, que ela mesma vivenciou, de modo bem consciente, a partir de seus sete anos de idade.
2Edith Stein. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. Trad. Maria do Carmo Wollny e Renato Kirchner. Rev. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Paulus, 2018. – Coleção Obras de Edith Stein. Esse texto será referido aqui por: EA (Escritos Autobiográficos),
3Se vivesse em nosso tempo, Edith Stein certamente refletiria sobre a influência das redes sociais na formação de nossas crianças e jovens. Pela internet, toda pessoa pode ter acesso imediato a qualquer tipo de informação, e por isso é preciso redobrar a atenção com relação a nossas crianças e jovens. Aprendemos com Edith que tudo que se passa no interior, da dimensão psíquica e nos sentimentos, acaba se manifestando na dimensão o corpo, como, por exemplo, uma diminuição da energia vital como um todo: do apetite, de horas de sono, do interesse pelas pessoas e coisas que se passam ao redor. Esse
tipo de atenção, podemos ter com nossos filhos, sobrinhos, netos, alunos etc., sem ter medo de estar sendo muito invasivos.
4Essas conferências de Edith Stein foram reunidas e publicadas em um livro chamado “A Mulher”. Existe uma tradução brasileira: STEIN, Edith. A mulher – sua missão segundo a natureza e a graça. Trad. Alfred Keller. Bauru, SP: EDUSC, 1999. Nessas conferências Edith Stein não trata apenas de questões femininas, mas da formação dos jovens, em geral. Como em sua época a formação das mulheres era muito mais restrita, comparada a dos homens, ela enfatiza numa igualdade de condições para que todos possam se formar, sem deixar de respeitar a especificidade masculina e feminina, mas compreendendo que é apenas o indivíduo singular que deve ser formado, sempre em vistas do desenvolvimento de suas potencialidades própria, a sua “nota pessoas”, como ela se refere. É realizando a própria essência, aquilo que se “sente” que se “deve ser”, que as pessoas são capazes de se tornar indivíduos livres, responsáveis e felizes.
5Não podemos evitar que as crianças e jovens tenham contato com a cultura “liquida” que vivemos hoje em dia, mas podemos fortalecê-los e prepará-los para vive-la por meio dos vínculos afetivos com a família.