A que ponto chegamos! Ao tomar consciência da ADI 5668/2017 eu lembrei do mito grego de Procusto. Ele fazia os viajantes deitarem numa cama, no meio da noite, imobilizava-os e os obrigava a ocupar o exato tamanho do leito oferecido. Dependendo do tamanho do hóspede, ele o adaptava à cama, cortando a cabeça ou os pés, ou esticando até quebrar os ossos. É isso que alguns partidos têm feito no Brasil com suas ideologias. Se as leis, a sociedade e toda a nação não se adaptarem aos seus projetos, não servem. Eles não podem ceder, mas o país inteiro tem que ceder a eles. Falam em diálogo, mas no fundo, querem imobilizar a todos com um monólogo de sua ideologia partidária.
O Plano Nacional de Educação (PNE) passou por um longo caminho para ser aprovado. A partir de 2011, foram quatro anos de discussões, incluídos diferentes setores da sociedade, realizadas consultas públicas e as diretrizes exaustivamente debatidas em todos os segmentos previstos. Enfim, em 2014, o PNE foi aprovado nas instâncias
previstas. As propostas foram sendo depuradas para que o PNE pudesse atender aos novos desafios da Educação, em meio a uma sociedade em mudança de época. Longe de ser um PNE perfeito, foi democraticamente construído, e seu valor está, tanto no processo, quanto no resultado. Depois de 2014, vinha o desafio de implementar e fazer acontecer as adequações necessárias sobre os Planos educacionais dos Estados e Municípios. E, mais uma vez, o Brasil mostrou sua vitalidade aprovando os mesmos, em seus níveis subsequentes, com a participação vigorosa e atuante dos legisladores, educadores e famílias.
Prevenção do bullying
Diante desse contexto, gostaria de afirmar que a ADI 5668, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) é como a cama de Procusto: improcedente, incoerente, injusta, inconsequente, inadequada, interesseira.
• Improcedente porque sua argumentação procede de uma carência de interpretação que quer incluir o que já está incluído;
• Incoerente porque um partido que se diz democrático não pode impor algo que a sociedade não quer.
• Injusta porque quer defender um único grupo em detrimento de outros;
• Inconsequente porque não leva em conta as reais dimensões que envolvem um tema reduzindo-o a uma única estratégia;
• Inadequada porque não considerou o processo realizado, mas só o resultado;
• Interesseira porque não admite que seus interesses não estejam demarcados categoricamente como prerrogativa em detrimento do bem comum.
Sinceramente, não quero acreditar que o Supremo Tribunal Federal (STF) irá cair nas redes desse argumento maquiado de vingança, ajuizado na ADI 5668, que aparenta ser mais um imbróglio jurídico. Parece ser forçada por quem não admite derrota nos processos democráticos e quer impor sua ideologia goela abaixo, não se importando com quem vai se afogar.
O STF tem uma chance privilegiada, um momento oportuno de mostrar à sociedade que os processos democráticos têm um valor imprescindível para o equilíbrio social. Os partidos devem aprender a dialogar nas instâncias corretas, no momento certo, de maneira certa e não instrumentalizar o STF para seus deleites ideológicos. Ao meu ver, este é o âmago da questão: um partido político, usando de um instrumento democrático como uma ADI, faz uma petição na maior instância jurídica do país (STF), para impor sobre toda a sociedade, através de um Plano Nacional de Educação, uma ideologia de desconstrução dos valores da família, chamada teoria de gênero. Todo o processo democrático de construção do PNE escolheu tirar essa referência ideológica. As famílias brasileiras não querem esse viés estranho aos seus valores nas escolas, pois educação sexual é uma prerrogativa do seio familiar. Mas, o PSOL não satisfeito quer obrigar o fatídico retorno dessa proposta, através de um discurso maquiado de “prevenção do bullying”. Isso, ao meu ver, é manipulação dos interesses da nação. O STF há de desconstruir esse intento antidemocrático.
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E como fica a questão da prevenção do bullying nas escolas públicas e particulares?
O bullying existe, é real; e, de fato, muitas crianças, adolescentes e jovens sofrem essa realidade. A CNBB, em sua nota, colocou muito bem que são muitos os tipos e cita alguns: em nível físico, moral, psicológico, material, verbal, sexual, social, religioso, familiar ou cibernético. Foi exatamente por isso que o PNL previu com muita propriedade toda essa amplitude que, contempladas nas Diretrizes, podem ser tratadas de modo personalizado nas suas realidades respeitando a cultura local. Assim foram aprovadas as Diretrizes do PNE:
Nas Diretrizes para a superação das desigualdades educacionais:
III – Superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação.
Nas Diretrizes para a promoção da qualidade educacional:
V – Formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade.
Nas Diretrizes para a promoção da Democracia e dos Direitos Humanos:
X – Promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.
Está contemplada a abertura para todas as ações de defesa, proteção e prevenção ao bullying na expressão: ERRADICAR TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO.
Estão contemplados os valores que fundamentam a sociedade. O Brasil tem VALORES MORAIS E ÉTICOS que devem ser respeitados dentro do processo democrático.
Está contemplado o respeito aos DIREITOS HUMANOS E À DIVERSIDADE que temos no nosso país.
Portanto, diante dessa perspectiva, é necessário um grande esforço em nível nacional, de todos os setores da sociedade, para adequar as realidades educacionais àquilo de melhor que o PNE propõe, de maneira especial a valorização dos nossos educadores. Essa sim seria a pauta mais digna para uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF: A VALORIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO. É inconstitucional o tratamento que está sendo dado aos profissionais da área da educação, conforme rege a Constituição no art. 206, inciso V, que trata da valorização dos profissionais da educação escolar. Se alguém está sofrendo bullying em nosso país, são os nossos educadores que são intimidados a sofrer a humilhação de dar o melhor de si e receber o desprezo e a desvalorização profissional estampados nos seus salários. Esse é o maior bullying nacional.
Pacto Educativo Global
O Papa Francisco já se manifestou em muitos discursos oficiais sobre a ideologia de gênero. Falando para os jovens de Nápoles, em 2015, o Papa Francisco diz que a teoria de gênero é um erro da mente humana. E mais: “A crise da família é uma realidade social. Há as colonizações ideológicas das famílias, modalidades e propostas que estão na Europa e provêm também de além-mar. E ainda o erro da mente humana que é a teoria de gênero, que cria muita confusão. Assim a família está sob ataque”.
Os termos usados pelo PSOL para justificar a ADI 5668, tais como “heteronormatividade, norma cisgênera, homossexuais, bissexuais, assexuais, travestis, transexuais ou intersexos” são extremamente complexos, sem consenso científico, e trazem muita confusão quando utilizados indevidamente para crianças e adolescentes. E o problema se torna ainda maior ao ser jogado nas costas do educador a responsabilidade de distinguir essas situações e resolver esses dilemas criados e impostos por grupos ideológicos. Se a família está sob ataque, como diz o Papa, nesse caso, eu diria que querem tornar a escola o campo de guerra.
Talvez, para responder a esses desafios educacionais, já temos uma perspectiva que nos traz o próprio Papa Francisco: um Pacto Educativo Global. É uma proposta que une as famílias, comunidades, escolas e universidades, as instituições, as religiões, governantes, a humanidade inteira “na formação de pessoas maduras”. O Pacto Educativo Global parte da figura de um provérbio africano: “Para educar uma criança, é necessária uma aldeia inteira”, isto é, todos somos responsáveis. Vamos voltar a focar no essencial, e para um país se desenvolver o essencial é cuidar da família e da educação, pois o resto vem por consequência.
Dom Ricardo Hoepers
Presidente da Comissão Vida e Família da CNBB
Bispo do Rio Grande/RS