A ordem como princípio universal de harmonia e relação entre as coisas
Ordem é uma relação qualquer entre dois ou mais segmentos que possa ser expressa por meio de uma regra. Essa noção, que é a mais geral, foi expressa por Gottfried Wilhelm Leibniz, mais precisamente, em uma passagem de sua obra intitulada Discurso de Metafísica, com as seguintes palavras:
O que passa por extraordinário é extraordinário somente em relação a alguma ordem particular, estabelecida entre as criaturas, porque, quanto à ordem universal, tudo é perfeitamente harmônico. Tanto isso é verdade que, no mundo, não só nada acontece que esteja absolutamente fora de regra, como também não se saberia sequer imaginar algo semelhante.
Suponhamos que alguém marque uma quantidade de pontos no papel, de um modo qualquer: digo que é possível achar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo certa regra, e tal que passe por todos esses pontos na mesma ordem com que foram traçados pela mão. E, se alguém traçar uma linha contínua, ora reta, ora curva, ora de outra natureza, é possível achar uma noção, regra ou equação comum a todos os pontos dessa linha em virtude de qual mudanças da linha sejam explicadas.
Por exemplo, não há nenhum rosto cujo contorno não faça parte de uma linha geométrica e não possa ser traçado de uma só vez por meio de certo movimento regulado. […]. Assim, podemos dizer que, qualquer que fosse o modo como Deus tivesse criado o mundo, este teria sido sempre regular e teria uma ordem geral (Leibniz, 2024, p. 37).
Neste sentido, simplesmente, a ordem consiste na possibilidade de expressar, com uma regra justa, isto é, de maneira geral e constante, alguma relação, seja ela qual for, entre dois ou mais segmentos de uma realidade qualquer. Este é o significado mais genérico de ordem (Abbagnano, 1998). E este mesmo significado, por certo, se estende à noção de hierarquia, a qual guarda estreita conexão com a noção de ordem.
As três formas de ordem — serial, total e de grau — fundamentais para a harmonia e justiça universais
Entretanto, no âmbito da ordem e, por conseguinte, da hierarquia, ainda é possível distinguir três noções mais específicas, a saber: a primeira diz respeito à ordem serial; a segunda se refere à ordem total; e a terceira está relacionada com a ordem de grau ou nível.

São Tomás de Aquino. Crédito: Bartolomé Esteban Murillo/Domínio Público.
A noção de ordem serial é própria da relação antes e depois. Aristóteles observa, em sua obra denominada Metafísica, que essa relação ocorre onde há princípio, porquanto, as coisas precisam estar mais ou menos próximas do princípio. Um antes ou um depois pode ser determinado em relação ao espaço e ao tempo, ao movimento, à potencialidade ou à disposição. Mesmo no âmbito do conhecimento, uma coisa vem antes de outra por definição (Aristóteles, 2000). Aristóteles quer destacar, assim, a ordem serial como ordem causal, o que implica dizer que a causa até pode subsistir sem o efeito, porém, o efeito não pode subsistir sem a causa. No entanto, esse destaque dado à ordem causal nem sempre obscurece o conceito formal de ordem serial. Tomás de Aquino, em sua Suma teológica, retoma a definição aristotélica, com os seguintes dizeres:
A ordem sempre se diz por comparação com um princípio. Por isso, assim como o princípio se diz de múltiplas maneiras, por exemplo, do lugar, o ponto; do conhecimento, os princípios da demonstração, e também das diversas causas, assim também se diz a ordem. Em Deus, fala-se de princípio segundo a origem, […] Portanto, n’Ele deve haver uma ordem de origem […]. Agostinho a chama ‘uma ordem de natureza, pela qual um não precede o outro, mas procede do outro’ (Aquino, 2009, p. 671).
Nesta passagem, o escolástico quer explicitar que a ordem causal é uma exemplificação da ordem geral, tão necessária para a manutenção da justiça e da harmonia entre todas as coisas.
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A noção de ordem total consiste na disposição recíproca das partes de um todo. Como aponta Aristóteles, na obra já mencionada, Metafísica, esta espécie de ordem pode se referir ao lugar, à potência ou à forma. Esta ordem pode ser entendida, de maneira bem precisa, como a disposição das coisas em seus lugares bem ajustados e adequados. Esta definição, por óbvio, pressupõe que, de maneira prévia, seja disposto para cada coisa, o seu lugar mais justo e apropriado, com vistas ao fim a que ela se destina. Por isso, esta noção de ordem, como não poderia mesmo ser diferente, é alicerçada no conceito de fim. Se a ordem serial é, de modo destacado, uma ordem causal, a ordem total é, sobretudo, uma ordem final. Este tipo de ordem possibilita, por exemplo, que cada um assimile, com a máxima clareza, a noção de bem comum. Trata-se da ordem que Tomás de Aquino, na Suma teológica, chama de ordem dos fins ou ordem dos agentes (Aquino, 2009). É ela que permite, por exemplo, perceber um lugar como reino dos fins.
E a noção de ordem de grau ou nível é aquela que, como expõe Tomás de Aquino, também na Suma teológica, estabelece a distinção entre ordem como hierarquia e ordem como grau individual da própria hierarquia. No primeiro sentido, explica o “Doutor Angélico”, a ordem compreende vários graus; no segundo, compreende um único grau, de tal modo que se fala de diversas ordens de uma única hierarquia (Aquino, 2005).
Neste segundo sentido, a ordem é, simplesmente, o grau, o plano ou o nível de uma ordem total. Como se pode notar, não obstante haja distinções conceituais entre ordem serial, ordem total e ordem de grau ou nível, todas essas noções guardam íntimas relações entre si. Há um irretorquível entrelaçamento entre elas, pois, todas as três articulam a ideia essencial de ordem e hierarquia, indispensável para todas as coisas. Aliás, é próprio da alma racional exigir que se evite o caos e a desordem, fontes de injustiça e desarmonia.
Destarte, quando é afetada, de alguma maneira, a ordem e a hierarquia, inevitavelmente, as mais diversas relações, sejam elas quais forem, ficam bastante instáveis e desequilibradas, provocando sérios prejuízos para a justiça e a harmonia do todo.
Marcius Tadeu Maciel Nahur
Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 1014 p.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009. v. I. 692 p.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. v. II. 891 p.
ARISTOTELE. Metafisica. Traduzione di Giovanni Reale. Milano: Bompiani, 2000. 824 p.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Discurso de Metafísica. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Editora Vozes, 2024. 104 p.