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Padres e o peso invisível: um olhar sobre o ministério sacerdotal

O vazio existencial entre os presbíteros

O vazio existencial entre os presbíteros pode causar danos irreparáveis. Ao perderem o sentido da vida, é aberta uma chaga silenciosa e devastadora que requer nossa atenção integral, tanto no plano objetivo quanto subjetivo.

Ao tentar contra a própria vida, trata-se, antes de tudo, de um ato moralmente grave e objetivamente condenado pela Igreja, pois viola, de modo direto, o quinto mandamento: não matarás (Ex 20,13), pois a vida é dom sagrado recebido de Deus e confiado ao homem como guardião, não como proprietário. 

Créditos: Acervo pessoal – Padre Leandro Rodrigues dos Santos

O Catecismo da Igreja Católica é categórico ao afirmar: “O suicídio contradiz a inclinação natural do ser humano a conservar e perpetuar a sua vida. É gravemente contrário ao amor do Deus vivo” (CIC 2281). Trata-se, pois, de um gesto de rebelião ontológica, uma recusa radical da existência enquanto dom. 

No entanto, ao mesmo tempo em que a Igreja condena o ato do suicídio, ela não se apressa em julgar o suicida. O mesmo Catecismo reconhece que, do ponto de vista subjetivo, a gravidade do ato pode ser atenuada ou até anulada por perturbações psíquicas, sofrimentos atrozes, angústia existencial ou outras circunstâncias que diminuam a liberdade e o discernimento da vontade (cf. CIC 2282).

Aqui se revela a face materna da Igreja que, sem relativizar a gravidade objetiva do ato, estende a misericórdia e intercede pela salvação daqueles que sucumbiram à escuridão. “Não devemos desesperar da salvação das pessoas que se mataram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, dar-lhes ocasião de um arrependimento salutar” (CIC 2283).

O ser humano é essencialmente um ser de decisão

Entretanto, é fundamental estabelecer uma distinção crucial: se por um lado é verdade que, no instante do suicídio, a liberdade pode estar profundamente comprometida, uma vez que a alma, imersa em densas trevas, vê sua vontade dominada pelo sofrimento, por outro lado, é igualmente verdadeiro que, ao longo do percurso que conduziu a tal desfecho, existiram inúmeras ocasiões de escolha. Foram pequenos e grandes atos, decisões conscientes ou não, que, somados, traçaram o caminho até aquele momento extremo.

Como afirmou Viktor Frankl, psiquiatra e sobrevivente dos campos de concentração nazistas, “o ser humano é essencialmente um ser de decisão; ele se define pelas escolhas que faz”. Para Frankl, a alma humana se encontra continuamente diante do imperativo de decidir, e é precisamente aí que reside sua dignidade mais profunda. Desconsiderar essa liberdade progressiva, exercida dia após dia, é apagar a responsabilidade moral que temos diante de nosso próprio destino.

O suicídio, do ponto de vista filosófico e espiritual, é uma forma extrema de negação da realidade, um gesto simbólico que tenta eliminar a dor, a angústia ou o fracasso através da aniquilação do próprio sujeito que sofre. Nesse sentido, como observava São Tomás de Aquino, trata-se de uma forma de violência contra a ordem natural e contra a razão, pois “o suicídio é contrário à caridade que o homem deve a si mesmo” (S.Th., II-II, q. 64, a. 5).

É, portanto, uma tentativa de “resolver” uma situação insuportável negando a existência, quando, na verdade, a morte não anula a realidade, apenas a torna mais trágica. O suicídio não transforma o mundo, apenas interrompe a possibilidade de redimi-lo através da própria vida.

Cuidados com a dimensão física e psicológica do presbítero

Diante do cenário crescente de angústias, depressões e casos de suicídio entre os presbíteros, é imprescindível propor uma resposta integral, preventiva e terapêutica, que considere a totalidade da pessoa do sacerdote, corpo e alma, natureza e graça, matéria e espírito. A dignidade ontológica do ministério ordenado não anula a fragilidade da condição humana, antes, a supõe e exige que ela seja assumida com responsabilidade, sabedoria e humildade.

Antes de qualquer juízo ou análise, é fundamental reconhecer, com lucidez e realismo, a urgência de um cuidado sério e constante com a dimensão física e psicológica do presbítero. Não são raras as situações em que disfunções hormonais, deficiências nutricionais, alimentação inadequada, sedentarismo, distúrbios do sono ou o isolamento social atuam como gatilhos determinantes para o desenvolvimento de estados depressivos e sofrimentos existenciais profundos.

Muitas vezes, aquilo que se interpreta de forma precipitada como simples “fraqueza espiritual” está, na verdade, enraizado em causas clínicas e psíquicas que clamam por um acompanhamento competente e um olhar pastoral sensível, capaz de enxergar o ser humano por inteiro.

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A saúde mental

Numerosos estudos indicam que a saúde mental está intrinsecamente ligada ao bom funcionamento neuroquímico e endócrino do organismo. Entre os principais hormônios que regulam o humor e a disposição, destaca-se a serotonina, cuja deficiência está associada diretamente à depressão e à perda do bem-estar. A dopamina, essencial para a motivação e o prazer, quando em níveis baixos, provoca apatia e tristeza.

A noradrenalina, ligada ao foco e à energia, se em déficit, conduz à letargia e ao desânimo. Já o cortisol, conhecido como hormônio do estresse, quando desregulado, seja em excesso ou em escassez, intensifica quadros depressivos e ansiosos.

A esse panorama somam-se as alterações hormonais, como os distúrbios da tireoide, especialmente o hipotireoidismo, a baixa testosterona em homens ou os desequilíbrios hormonais femininos, frequentemente presentes em mulheres consagradas ou em intensa atividade pastoral. Tais alterações impactam, de forma significativa, o humor, a energia e a vitalidade.

A saúde emocional e espiritual 

É impossível abordar a saúde emocional e espiritual dos sacerdotes sem considerar sua dimensão psicossomática: corpo, mente e espírito formam uma unidade inseparável no ser humano criado à imagem e semelhança de Deus. Por isso, ignorar os aspectos biológicos é negligenciar a própria integridade da pessoa.

Neste sentido, destaca-se a importância de diversos nutrientes fundamentais. A vitamina D, por exemplo, especialmente em regiões de pouca exposição solar, está fortemente relacionada à prevenção de estados depressivos. As vitaminas do complexo B, notadamente a B6, B9 (ácido fólico) e B12, são cruciais para a síntese de neurotransmissores como a serotonina e a dopamina. A carência de magnésio, ferro, zinco e ômega-3 compromete seriamente a estabilidade emocional e o bom funcionamento cerebral.

A Dra. Janaina S. Nicolini, nutricionista clínica funcional integrativa e ortomolecular (clinicando há 28 anos), com sua experiência clínica, complementa essa visão apontando ainda a importância do selênio, nutriente que, juntamente com o zinco, o ferro e o ômega-3 (particularmente nas formas EPA e DHA), contribui para a modulação de neurotransmissores como o GABA, a serotonina e a dopamina, além de favorecer um sono reparador.

Ela ressalta que o cérebro é constituído, em grande parte, por boas gorduras, e que sem esses lipídios essenciais a atividade neurológica fica prejudicada.

 A saúde intestinal e neurológica

Outro ponto levantado pela doutora é o papel da microbiota intestinal, considerada o “segundo cérebro”. Distúrbios digestivos, inflamações intestinais, alergias alimentares, constipações ou o trânsito intestinal acelerado afetam diretamente a produção de triptofano, aminoácido precursor da serotonina. Assim, o cuidado com a saúde intestinal torna-se indispensável para o equilíbrio psíquico e neurológico.

Por fim, a Dra. Janaina menciona o NAC (N-acetilcisteína), suplemento atualmente utilizado em quadros de déficit de atenção, ansiedade, depressão e desregulação neuroquímica. Ele auxilia na regulação dos eixos neuronais, combatendo os efeitos deletérios do estresse crônico, da fadiga emocional e da alimentação empobrecida, realidades que, infelizmente, atingem muitos ministros ordenados hoje.

Ao enxergar o sacerdote como um homem integral, e não como um “super-herói espiritual”, abre-se espaço para uma pastoral do cuidado que respeita sua condição humana. Como bem lembrou a Dra. Janaina: “O pastor estando bem, seu rebanho também irá bem.” Cuidar do sacerdote em todas as suas dimensões, espiritual, emocional e física é, portanto, um ato de justiça e de caridade para com ele e para com a Igreja.

O cuidado integral do presbítero

Dessa forma, é urgente que os presbíteros recebam acompanhamento médico periódico, exames hormonais e nutricionais, e sejam encorajados a cuidar do próprio corpo como dom e templo do Espírito Santo (cf. 1Cor 6,19). A prática regular de atividade física, uma alimentação equilibrada, a boa qualidade do sono, o cultivo de vínculos fraternos e ambientes saudáveis de convivência presbiteral são atitudes concretas que, aliadas à graça, sustentam o vigor da alma.

Também é essencial reafirmar que tais medidas físicas e psicológicas não são meros apêndices “terrenos”, mas condições necessárias para que o presbítero viva bem sua vocação eclesial e espiritual. A graça supõe a natureza, e a santidade não dispensa a saúde. O cuidado integral é, portanto, parte da responsabilidade moral e pastoral da Igreja por seus ministros.

 Acompanhamento espiritual e psicológico

Além disso, é fundamental oferecer ao sacerdote um acompanhamento espiritual e psicológico contínuo. A direção espiritual autêntica, aliada a uma terapia profissional séria e bem orientada, pode ajudar a nomear e atravessar as zonas obscuras da alma, permitindo que a dor se transforme em lugar de fecundidade espiritual. Não há oposição entre fé e psicologia quando ambas estão ordenadas ao verdadeiro bem da pessoa. Ao contrário, como dizia São João Paulo II, “a graça não destrói a natureza, mas a supõe e a aperfeiçoa” (Fides et Ratio, n. 43).

No entanto, nenhuma dessas soluções será suficiente se não estiver alicerçada numa espiritualidade profunda, autêntica, enraizada na Tradição viva da Igreja. O sacerdote precisa urgentemente reencontrar o centro espiritual de sua vocação: viver não a partir das expectativas humanas, do mundo, das comunidades, dos próprios ideais de perfeição, mas a partir daquilo que Deus lhe confia.

Jesus não impõe fardos insuportáveis; antes, convida: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos… meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11,28-30). A raiz de muitos sofrimentos sacerdotais está na inversão dessa lógica: quando se assume o fardo da vaidade, da performance, do aplauso ou da frustração, o peso torna-se insustentável.

A vida de oração e sacramental são vitais

O sacerdote é, por vocação, um alter Christus. Sua identidade não se define por aquilo que faz, mas por aquilo que é: configurado ao Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja. Trata-se de uma grandeza ontológica, não funcional. Quando esta verdade é esquecida, o sacerdócio perde seu chão e se torna um peso. Mas quando é reencontrada, torna-se fonte de sentido, de esperança e fortaleza. Como ensina o Presbyterorum Ordinis, “o sacerdote deve alimentar continuamente a sua vida espiritual pela oração e, sobretudo, pela Eucaristia, fonte e ápice de toda a vida cristã” (PO, n. 5).

A vida sacramental não é apenas relevante, ela é absolutamente vital. A confissão, quando buscada com frequência e sinceridade, deixa de ser um simples ato de purificação moral para tornar-se fonte viva de força interior, onde a alma é gradualmente moldada segundo o Coração de Cristo. A Eucaristia, celebrada com fé e adorada no silêncio, torna-se o ponto de convergência das angústias, das dúvidas e das esperanças mais íntimas do coração sacerdotal.

Na adoração, o tumulto interior se acalma, e o presbítero reencontra o centro silencioso que sustenta sua vocação: o Mistério. O Rosário de Nossa Senhora permanece como arma discreta e potentíssima no combate espiritual, como testemunharam, não apenas com palavras, mas com a vida, santos como São João Maria Vianney e São Padre Pio. Nenhuma noite escura resiste indefinidamente à luz que brota de uma vida sacramental vivida com fidelidade, constância e profundidade.

A anemia espiritual e vocacional

Fala-se muito, em nossos tempos, de uma “crise do sacerdócio”. Mas é preciso imediatamente qualificar essa afirmação para não recair em equívocos teológicos ou sociológicos: o sacerdócio ministerial, em sua substância ontológica e sacramental, não está nem pode estar em crise, pois é dom irrevogável de Deus (cf. Rm 11,29), instituído por Cristo como participação real e eficaz no seu próprio sacerdócio eterno.

A crise que enfrentamos não é, pois, da ordem do ser do sacerdócio, mas da consciência e da vivência de muitos dos que o recebem. Trata-se, portanto, não de uma crise da identidade do sacramento, mas de uma crise existencial da pessoa humana do sacerdote que, uma crise de percepção, um equívoco da inteligência, por vezes, se vê perdida ou esvaziada dentro da própria vocação.

Esse drama espiritual e antropológico tem raízes profundas. Muitos presbíteros, imersos nas exigências da pastoral, nas tensões da vida eclesial e nas expectativas, por vezes desordenadas, das comunidades ou das estruturas, começam a experimentar um sentimento de insuficiência, de inutilidade, como se o dom recebido fosse pequeno demais ou irrelevante diante das complexidades do mundo contemporâneo.

Essa falsa percepção, alimentada por uma cultura que reduz o valor da pessoa à sua produtividade e visibilidade, gera o que poderíamos chamar de anemia espiritual e vocacional: o padre deixa de contemplar o mistério do qual participa, e passa a julgar-se apenas por suas fragilidades humanas ou pelos frutos imediatos que (não) vê.

Redescobrir o dom recebido

É aqui que se revela a raiz da crise: a perda da contemplação da verdade teológica e espiritual do sacerdócio. O sacerdote é, antes de tudo, canal da graça de Deus, não por mérito próprio, mas por eleição e consagração divina. Ele é instrumento vivo do Espírito Santo, configurado à Cristo Cabeça, Esposo e Pastor da Igreja. N’Ele se cumpre aquilo que São João Maria Vianney dizia com tanta simplicidade e profundidade: “O sacerdote não é sacerdote para si: ele é para vós”. Ele é mediador, pontífice, servidor do altar e da Palavra, sacramento visível da presença invisível de Cristo entre os homens.

Por isso, como nos recorda o Concílio Vaticano II, “os presbíteros, configurados a Cristo pela unção do Espírito Santo, são consagrados para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e celebrar o culto divino como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento” (cf. Presbyterorum Ordinis, n. 2).

É legítimo e até necessário que o sacerdote reconheça sua humanidade, suas fragilidades, suas feridas. Ignorar isso seria cair em uma espiritualidade desencarnada e artificial. Mas olhar a própria humanidade não deve conduzir ao desespero, e sim à esperança, pois essa humanidade foi assumida por Deus, é amada por Ele e nela atua a graça de modo transformador. É precisamente nesse vaso de barro (cf. 2Cor 4,7) que Deus depositou um tesouro: a participação no sacerdócio de Cristo, que transforma a limitação humana em espaço de manifestação da potência divina.

A verdadeira superação da crise sacerdotal

Assim, a verdadeira superação da crise sacerdotal não está em estratégias externas nem em métodos de autossuperação baseados em performance, mas na redescoberta do dom recebido, na renovada contemplação do mistério de ser escolhido por Deus para ser canal da sua graça.

O sacerdote precisa, mais do que nunca, reencontrar-se com a sua identidade no silêncio da oração, na escuta da Palavra, na adoração eucarística e no ministério bem vivido. Ali, onde o humano e o divino se tocam, sua vocação se reconfigura, não como peso, mas como alegria; não como imposição, mas como eleição; não como tarefa fria, mas como participação ardente na missão do Salvador.

Como dizia o Papa Bento XVI: “Ser sacerdote é mergulhar a própria existência no mistério da Cruz, tornar-se com Cristo uma oferenda viva”. E quem assim compreende sua vocação, não vive de nostalgias nem de frustrações, mas da esperança certa de que Deus sustenta aquele que Ele mesmo chamou e consagrou.

O suicídio sacerdotal desvela uma chaga profunda e silenciosa, um clamor urgente que convoca a uma reforma íntima e radical na vida presbiteral. Essa renovação ultrapassa o indispensável cuidado com a saúde física, psíquica e espiritual dos padres; ela reclama, acima de tudo, um retorno radical a Cristo, o centro ontológico, a rocha inabalável sobre a qual toda existência pode firmar-se com segurança e esperança.

Que cada sacerdote, mesmo nas horas mais densas da escuridão, seja capaz de ouvir, nas dobras mais secretas de sua alma, a voz fiel de Deus que jamais o abandona: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedec” (Sl 110,4). Que essa promessa seja luz e escudo, libertando-o da tentação cruel de crer que sua vida perdeu o sentido.

Padre Leandro Rodrigues dos Santos
Arquidiocese de Curitiba, Mestre em Teologia na Universidade Salesiana de Roma