Espiritualidade, vida de oração, união, intimidade… Muitos são os nomes utilizados para retratar essa aproximação com Aquele que é o Autor de todas as coisas, mas, ao mesmo tempo, quer se deixar alcançar e entrar em comunhão com Sua criatura.
Com Santa Teresa D’Ávila, vimos quatro modos de se aproximar, quatro modos de oração que ela sabiamente resumiu como “modos de regar o jardim da alma”. Afinal, essa perfeita comunhão ou união mística não pode ser realizada em qualquer lugar nem de que qualquer modo. Por isso, utilizando-se da metáfora do jardim ou horto, largamente explorada nas Sagradas Escrituras, a doutora da Igreja lembra que a alma deve ser um terreno bem cuidado onde seu Senhor encontrará Suas delícias.
A oração precisa ser preparada
Se, de início, a preparação desse jardim é um trabalho árduo, exaustivo e quase infrutífero, com o tempo, aquele que não deixa de derramar Sua Misericórdia abundantemente, passa a prover tudo o que é necessário para que a alma cresça em dignidade e se torne apta a recebê-Lo. Vimos, nos artigos anteriores, esses quatro estágios da rega do jardim ou horto feito pelo ser humano e por Deus em perfeita harmonia:
1 – Tirar água do poço profundo usando um simples balde;
2 – Contar com roldanas, arcabuzes e engrenagens para tirar a água do poço;
3 – Criar um sistema de irrigação para o jardim por canais ou aquedutos;
4 – Usufruir do mais perfeito sistema de prover água: a chuva.
Nos últimos artigos, debruçamo-nos sobre a oração mística, aquela onde o próprio Deus começa a derramar sobre a alma todas as luzes e benefícios extraordinários. Se os seus primeiros graus são comparados a um sistema de irrigação completo, os últimos são melhor retratados como a própria chuva que desce do céu.
Fica claro, portanto, que o ser humano nada mais faz além de receber o influxo que vem através do Espírito Santo. Sua participação passa a ser eminentemente passiva, dispondo-se e não oferecendo obstáculo à ação celeste. Neste grau extremo de intimidade e união com Deus, tudo precisa ser provido pelo próprio Criador e Santificador da alma. Examinamos em detalhes esses graus de oração no último artigo.
Seguindo a proposta de trazer exemplos concretos sobre cada uma dessas diferentes etapas da oração, utilizemos agora os conhecimentos de Santa Elisabete da Trindade para entender melhor esses últimos graus da oração mística ou plena união com Deus.
Santa Elisabete da Trindade, a mística de Dijon
Com um desejo intenso de se tornar carmelita, mas sendo submissa à autoridade de sua mãe que só a liberaria para entrar no mosteiro com 21 anos, Elisabete Catez tomou a decisão de viver como se o mundo fosse seu Carmelo. Sua preparação foi tão consciente e verdadeira que, quando finalmente pôde viver sua vocação como irmã carmelita, teve uma rápida ascensão à união mística com Deus, em apenas 5 anos. Os mesmos anos que seriam seus últimos na Terra, e que acabariam por formar aquela que agora é conhecida como Santa Elisabete da Trindade.
Em seu texto intitulado “Último Retiro – Laudem Gloriae”, temos algumas definições e explicações práticas sobre a unidade com Deus na vida mística. Esta carmelita descalça da cidade de Dijon, na França, no ano de seu falecimento (1906), retrata bem o que é a vida que se encaminha muito à frente da união. Este é o cume de uma vida de santidade que começa com o chamado de Deus através do batismo de cada cristão. Escreve Elisabete em seu “Último Retiro”:
“‘Sede santos porque eu sou santo’: parece-me que é esta a mesma vontade que se expressa no dia da criação, quando Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’. É sempre o mesmo desejo do Criador, de unir, de identificar a si a sua criatura” (Último Retiro, Nono Dia, 22). O trajeto inteiro da santidade é descrito em um único parágrafo. Todos são chamados a serem santos! E a santidade só é completa quando a união com Deus é tão íntima que a união se transforme em unidade como vimos com Santa Teresinha do Menino Jesus. A alma passa então a identificar-se com Deus, seu modelo e meta.
O passo a passo da oração com Santa Teresa D’Avila
O caminho é aquele mesmo que vimos até aqui com Santa Teresa D’Ávila. Não existem atalhos, precisa ser vivido e desenvolvido passo a passo, com confiança e determinação. Por isso, Santa Elisabete avisa que o modo de chegar à unidade é a perfeita conformação com Cristo: único caminho, verdadeira santidade e única fonte de vida eterna para a alma. É necessário, portanto, que eu “estude este modelo divino, para identificar-me tão perfeitamente com ele que eu chegue a reproduzi-lo continuamente aos olhos do Pai” (UR, Décimo quarto dia, 37).
Não se trata de um estudo teórico, acadêmico, mas profundamente evangélico, vivo e vivido, onde se confrontam e complementam as Sagradas Escrituras, as virtudes teologais, os dons do Espírito Santo, a oração e adoração, bem como a Santa Eucaristia e os sacramentos. O objetivo é que eu seja “A alma que penetra e permanece nestas profundezas de Deus (…), e que, portanto, faz tudo nele, com ele, por ele e para ele…”
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É preciso morrer!
A vivência cotidiana e constante do mistério de Deus, nestes últimos graus de oração, difere em muito dos contatos intermitentes que se desenvolveram até então na vida espiritual. Para isso é que serviu toda a purificação vivida até então: “Eis a condição: é preciso morrer! Sem isto, podemos estar escondidos em Deus em certas ocasiões, mas não vivemos habitualmente neste Ser divino, porque as sensibilidades, buscas de si mesmo e todo o resto nos fazem sair dele” (UR, sexto dia, 16).
É assim que essa chuva de graças toma conta da alma e realiza aquilo que para ela mesma era irrealizável: perfeita comunhão de vida. As últimas purificações, muito além da capacidade humana, são feitas pelo próprio Senhor: “Quando a alma está profundamente fixada em Cristo, quando as suas raízes penetraram tão intimamente nele, a seiva divina circula nela abundantemente, e destrói tudo o que é imperfeito, medíocre e natural que existe em sua vida” (UR, Décimo terceiro dia, 33).
Santíssima Trindade
Esse caminho-meta, também união que tende à unidade, é largamente explorado em sua maravilhosa oração de 21 de novembro de 1904, “Elevação à Santíssima Trindade”. Analisemos alguns trechos:
“Ó meu Deus, Trindade que adoro, ajudai-me a esquecer-me inteiramente de mim mesma para fixar-me em vós, imóvel e pacífica, como se minha alma já estivesse na eternidade. Que nada possa perturbar-me a paz nem me fazer sair de vós, ó meu Imutável, mas que em cada minuto eu me adentre mais na profundidade de vosso Mistério.” Eis a meta: a eternidade! Viver já, o que se viverá eternamente. Adentrar-se mais e mais em Deus e Seu mistério buscando não compreendê-lo, o que é impossível, mas vivenciá-lo o máximo possível. Para isso:
“Pacificai minha alma, fazei dela o vosso céu, vossa morada preferida e o lugar de vosso repouso. Que eu jamais vos deixe só, mas que aí esteja toda inteira, totalmente desperta em minha fé, toda em adoração, entregue inteiramente à vossa Ação criadora.”
A santa retrata, novamente, todo o caminho espiritual. Só Deus pode santificar-nos, fazer de cada um o Seu céu, Sua inabitação. Mas ao ser humano compete buscá-Lo com todas as suas forças, todas as suas capacidades e todo o seu entendimento. Essa é a finalidade de todo o esforço ascético e místico: ser dono de si mesmo o máximo possível para poder entregar a Deus o que possuímos verdadeiramente. Não somente o que damos da boca pra fora, simplesmente por não termos o controle verdadeiro sobre nossos atos e vontades.
A alma transformada e em unidade com a Trindade Santa
Ela também pede essa completa transformação em outro Cristo, própria desta última fase da vida espiritual, expressando o seu desejo de “revestir-me de vós mesmo… submergir-me, invadir-me, substituir-vos a mim, para que minha vida seja uma verdadeira irradiação da vossa.” E não ignora que este trabalho de “cristificação” seja exercido pelo próprio Espírito Santo: “Ó Fogo devorador. Espírito de amor, ‘vinde a mim’ para que se opere em minha alma como que uma encarnação do Verbo: que eu seja para ele uma humanidade de acréscimo na qual ele renove todo o seu Mistério”.
Temos, por fim, uma alma perfeitamente transformada e em unidade com a Santíssima Trindade. O máximo possível enquanto o véu desta vida presente não é rompido. Cabe à alma, acolher o dom maravilhoso que é Deus em toda a sua amplitude e mistério. O que será então dela? Santa Elisabete responde (UR, Terceiro dia, 8) com uma citação de São João da Cruz (Cântico Espiritual 36,2), que é a perfeita síntese desta unidade conquistada e, além disso, encerra nosso estudo sobre a oração e os modos de regar o jardim da alma:
“A tua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para ti como a claridade do meio-dia. O Senhor te dará perpétuo repouso, encherá a tua alma de resplendor. Dará vigor a teus ossos. Serás como um jardim sempre regado, como uma fonte de águas que não se esgotam jamais… Elevar-te-ei acima do que há de mais elevado neste mundo.”