Santa Teresa de Jesus nos ensina a trilhar uma vida espiritual
Não é por acaso que Santa Teresa de Jesus é reconhecida como mestra da vida interior e da oração. Papa Paulo VI, ao proclamá-la doutora da Igreja, há 48 anos, lembrou que precisamos de seus ensinamentos para que não nos percamos nos ruídos do mundo exterior e nas exigências da vida moderna. Ele lembra que quem se entrega à busca dos sedutores tesouros da terra, fatalmente, perde os verdadeiros tesouros da alma. Perdemos também, segundo o Papa, não só o sentido do contato com Deus, mas a noção do dever e da necessidade de invocá-Lo e adorá-Lo (veja a homilia do Papa Paulo VI).
O que isso tem a ver com as terceiras moradas da vida espiritual? Além de relembrar que foi Santa Teresa quem traduziu o percurso espiritual até a santidade plena em sete níveis ou moradas, vale recordar que os “ruídos”, as “exigências” e “os sedutores tesouros” são aqueles que impedem o avanço espiritual nas segundas moradas. Como vimos no artigo anterior, pacificadas as paixões, desenvolvido o dom de inteligência, diminuído o contato com a desinformação do mundo e purificado o coração, mesmo assim os “espinhos” podem sufocar toda essa semente nova que vinha surgindo.
Aqueles que conseguem se manter firmes e atentos aos espinhos que tentam sufocar a vida espiritual têm novos desafios nas terceiras moradas. No entanto, se a “subida” desse monte de santificação nunca irá deixar de apresentar exigências, Santa Teresa nos anima dizendo que, a partir das terceiras moradas, o caminho já é “pavimentado”. Veremos o que isso significa.
Reorientando o mapa do caminho
As terceiras moradas encerram dois ciclos que temos seguidos nesta série de artigos “Caminho Espiritual e as Moradas”. Elas são a última etapa da via ascética, onde o esforço humano parece ser maior que o de Deus na caminhada espiritual, e defronta-se com as grandes mudanças que é preciso operar para deixar o velho Adão para trás. Como vimos, a via ascética se compõem das primeiras, segundas e terceiras moradas. Elas também são a segunda parte da via iluminativa, onde nos aproximamos, cada vez mais, do novo Cristo que surge, conhecendo-O cada vez mais, imitando-O e seguindo-O. Entende-se, assim, que existe uma unidade entre as segundas e terceiras moradas.
Portanto, as terceiras são as últimas moradas antes do início da via unitiva ou “dia do amor”, sob a regência do Espírito Santo. Se, por um lado, não existe uma ruptura entre as segundas e terceiras moradas, sucedendo-se quase que, naturalmente, por outro lado, a profundidade da vivência espiritual se acentua drasticamente.
Às portas da vida mística plena, vários “ajustes finos” são necessários para um salto grandioso na vida espiritual. Santa Teresa lamentava o fato de que, no seu tempo, uma grande quantidade de almas ficavam retidas nas terceiras moradas. São João da Cruz começa seus escritos conduzindo as almas a entrarem na via unitiva, ou seja, dando as chaves necessárias para se desvencilhar das terceiras moradas e entrarem no caminho de vivência das quartas moradas. Mas ele também alerta que muitas almas não prosseguem a partir dali por medo das exigências que virão.
Características gerais das terceiras moradas
Respondendo ao Papa Paulo VI, pode-se dizer que as terceiras moradas é o crescimento do desejo e a visão clara da necessidade de se invocar a Deus e adorá-Lo. O seguimento de Cristo na via iluminativa precisa desembocar nisso: um desejo, que é a visão de uma necessidade imperiosa, de se unir com o esposo. As terceiras moradas apontam as últimas podas fundamentais para se estar apto a ingressar na via unitiva.
São partes dessas moradas espirituais um extremo desejo de não ofender a Deus de maneira nenhuma, um costume e necessidade de penitências maiores e um crescimento na oração e na caridade (amor a Deus).
Esse desejo de não ofender a Deus, unido ao crescente amor por Ele, faz com que o cristão dessas moradas perceba com grande dor suas imperfeições. Afinal, se o combate aos pecados mortais ficaram nas primeiras moradas, e nas segundas os pecados veniais foram drasticamente diminuídos, aqui, os pecados veniais ainda cometidos e as imperfeições causam grande padecimento à alma. Só aquele que ama, verdadeiramente, pode entender o que é ver seu amado sendo desprezado ou não recebendo a atenção devida.
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Desse amor a Deus que faz desejar a união com Ele, sobrevém a grande força para sacrifícios e oferecimentos que a alma adquire nessas moradas. Tudo é pouco para se oferecer, nada é muito difícil. O cristão adquire também, por obra do dom de entendimento ou inteligência, a clareza de que por Deus vale todo e qualquer esforço, e que nada do que se faz, por maior que seja, pode ser digno d’Ele. Também desaparece aqui a noção de “troca” da qual somos terrivelmente contaminados em nossas orações e trato espiritual até então: “Se eu faço isso por Deus, Ele precisa me dar aquilo. Se eu fui bom, preciso ser protegido de toda desgraça e de todo mal”.
Não se iluda! São constantes aqui fases de secura na oração. Embora se busque Deus por meio da oração meditativa, não se encontra a oração afetiva. Ou melhor, às vezes, encontra-se; outras vezes, não se encontra. Isso se dá pela própria dinâmica do Espírito Santo, que sustenta a alma com dons, virtudes e consolações e, logo após, “esconde-se” para obrigar a alma a desenvolver-se e a sustentar-se “nas próprias pernas”.
Hugo de São Vítor usa uma bela imagem para descrever esse processo: como o mar, o Espírito flui e reflui, “flui para que cresçamos na virtude e reflui para que não nos ensoberbeçamos da virtude por causa da abundância da graça” (Sermo VI). É, portanto, natural essa alternância entre um fervor maior e uma ausência de forças para buscar Deus. A alma não cometeu nenhum erro que não tenha percebido, nem está sendo “castigada”, mas sim educada, podada em alguns momentos, para que produza frutos mais tarde (Jo 15,2). Deus busca, assim, a compreensão de que tudo vem de Deus, e sem Ele não há nada. São Vítor também faz, com essa dinâmica, que a alma deseje, profundamente, unir-se a Ele para gozar desses dons espirituais de forma constante e permanente.
É necessário abrir aqui um parênteses: as “securas”, “aridez” e “dificuldades em manter a vida espiritual” das primeiras moradas têm causas diferentes das que foram colocadas aqui. Lá, essa grande dificuldade em manter a vida espiritual não é uma pedagogia do Espírito Santo, mas é causada pela falta de virtudes, pela incapacidade de se desenvolver o dom de fortaleza e, também, por se alimentar os pecados veniais ou, até mesmo, os pecados mortais. A alma, assim, aparta-se de Deus conscientemente ou provoca essa separação nas primeiras moradas, sendo sua própria inimiga no caminho espiritual.
Voltando às terceiras moradas, a dica de Santa Teresa é viver esses momentos buscando a humildade, pois, como dito acima, Deus pode dar e dá toda sorte de bens espirituais quando bem quiser e não temos direito algum sobre isso. Também devemos combater a inquietação interior que essa ausência de contato íntimo com Deus gera, sofrendo e esperando, com paciência, sem descuidar de todos os atos e rotinas de nossa vida espiritual.
Existem também, nessa fase da vida espiritual, uma maior prontidão em obedecer a Deus. Lembre-se de que, nas primeiras moradas, não se ouvia nem se conseguia falar com Deus? Nas segundas, já começa-se a ouvir o que Ele quer, mas sofre por não estar pronto a obedecer ou por não conseguir obedecer? Aqui, além de ouvir com maior prontidão, já se consegue corresponder. Vive-se, assim, uma certa desenvoltura em corrigir os próprios erros e ignorar os erros alheios. Afinal, no juízo final, iremos responder por quem? Mais do que uma clareza, percebe-se e vive-se, na prática, que os erros dos outros não são causa nem desculpa para nossos erros. Percebe-se (e consegue-se viver) que o importante é corrigir-se e não ser juiz dos defeitos alheios.
Por último, é próprio das terceiras moradas um aprofundamento interior cada vez mais intenso. Faz-se necessária uma mortificação consciente da curiosidade, um atento desejo de não se envolver em conversas e compartilhar opiniões. Como diz a parábola do Evangelho, percebe-se aqui, neste campo espiritual, que, por si só é belíssimo, ainda existe um tesouro escondido em algum lugar (Mt 13,44). Percebe-se também que vale a pena vender tudo que possuímos para ir descobrir esse tesouro que se chama união com Cristo, um passo além do seguimento de Cristo na via iluminativa.
No próximo artigo veremos, com São João da Cruz, quais os passos que precisamos dar neste “vender tudo” que ele chama de despojamento ou desnudamento da alma, e que vem a ser uma nova e profunda forma de renúncia. Trata-se de uma purificação que precisa se tornar o miolo das terceiras moradas, preparando-se o avanço para as quartas moradas. Afinal, “quando a alma ama algo fora de Deus, torna-se incapaz de se transformar n’Ele e de se unir a Ele” (Subida, livro I, cap4). Caminhemos para essa desnudez espiritual, pois, como o filho pródigo da parábola (Lc 15,11-32), o próprio Pai das misericórdias quer nos dar vestes novas.