Segundas moradas: quando deixamos tudo para seguir Jesus
Pode-se dividir corretamente a primeira parte da vida espiritual ou ascética em duas fases: a via purgativa, que corresponde às primeiras moradas; e a via iluminativa, que corresponde às segundas e terceiras moradas.
Vimos que a via purgativa está vinculada à primeira pessoa da Santíssima Trindade, Deus Pai, e que, portanto, carrega semelhanças com toda a preparação que o Pai fez para que o reino de Israel pudesse receber seu filho amado. O percurso das primeiras moradas resume-se, então, numa plena vivência dos mandamentos e das virtudes conforme ficou claro nos artigos anteriores.
Na via iluminativa, o grande modelo e motor da santificação é Jesus Cristo, o verbo encarnado. É o verdadeiro discipulado de Cristo, a vivência dos conselhos evangélicos em plenitude, que fará com que possamos entrar no Reino de Deus que Jesus, incansavelmente, anunciou. Esse “reino”, “vida nova”, “água viva” ou “vida em abundância”, que Ele insiste em instaurar, é a vida sob a ação constante do Espírito Santo. Veremos como isso se dá na prática a partir das quartas moradas, onde se inicia a segunda parte da vida espiritual ou mística.
Um jovem que queria ser mais
As segundas moradas se abrem, deste modo, quando deixamos tudo para seguir o Cristo. Pedro, André, Tiago e João deixaram suas “redes”. Mateus deixou a banca de impostos, um discípulo deixou o pai que havia de enterrar e assim por diante.
Baseado nisso, o grande modelo para a entrada nas segundas moradas é o jovem rico do Evangelho de Mateus 19,16-22. O jovem, que quer saber como ser salvo, é instruído por Jesus a viver o caminho da conversão das primeiras moradas, ou seja, viver os mandamentos de Deus. A vivência dos mandamentos supõe a ausência do pecado mortal e, portanto, garante a vida eterna. No entanto, o jovem afirma que já fazia tudo aquilo e, Jesus, ao perceber que isto era verdade, convida-o a dar um passo a mais: além de estar apto para a salvação, por que não ser santo? Por que não ouvir o pleno chamado de Deus para a santidade? Por que não avançar para a via iluminativa, para as segundas moradas?
O convite ao jovem é que Deus faz a todos os que conseguem chegar ao final das longas primeiras moradas. Convite para não só viver a salvação dada gratuitamente ao homem, mas de ser discípulo do Mestre, caminhar sobre Seus passos e sob Seu olhar, entregar-se na verdadeira intimidade com o homem Deus, Jesus Cristo. A frase é clara e resume a via iluminativa que irá se iniciar: “Vem e segue-me!” (Mt 19,21).
A vida espiritual se constrói com renúncias
No entanto, o Evangelho narra que o jovem, apesar de viver os mandamentos há muito tempo, não conseguiu avançar rumo ao que aqui relacionamos com as segundas moradas descritas por Santa Teresa de Jesus. O que aconteceu?
Padre Juan Arintero, OP, em seu livro “Graus de Oração”, recorda que o desenvolvimento espiritual é o mesmo que uma conformidade progressiva com o Cristo. Aquele que reza e deixa a graça santificante atuar em si aproxima-se, cada vez mais, da vida de Deus por meio de Jesus Cristo. O final desse caminho espiritual é uma plena união com Deus na eternidade. No entanto, isso já se prepara quase que completamente nesta vida que vivemos. Forma-se, neste cristão santificado, um outro Cristo em plena união com a Santíssima Trindade. Essa vivência se dá, segundo Santa Teresa, nas sétimas moradas. Portanto, se o caminho de santidade é de conformidade com Jesus, é, naturalmente, um caminho de renúncia, abnegação e entrega à vontade do Pai. Entrega à morte se for preciso, entrega à cruz necessariamente.
A primeira renúncia da vida espiritual é a renúncia ao pecado mortal, ela introduz o cristão nas primeiras moradas. A segunda renúncia, aquela que impulsionará a entrada nas segundas moradas, é a renúncia a todo projeto e interesse pessoal. Renúncia a tudo aquilo que, mesmo não sendo pecado, não nos coloca diretamente no caminho e seguimento de Jesus Cristo, mas nos distrai e suga nossas energias em outras direções.
Na passagem do jovem rico, o que o impediu de seguir em frente foram seus bens e riquezas pessoais. No seu caso, o que lhe impede de se entregar totalmente a Deus? Quais são os planos que tomam conta de sua vida e acabam fazendo com que “não tenha tempo” para se dedicar à oração, à Eucaristia, ao aprofundamento diário e constante nas coisas de Deus?
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Por que uma simples reflexão e uma simples decisão não nos colocam no rumo certo e no progresso do caminho espiritual? Outra passagem do mesmo Evangelho responde: “Estreita, porém, é a porta, e apertado o caminho da vida e raros são os que o encontram” (Mt 7,14).
Muitos cristãos ficam “presos” nas primeiras moradas, sem voltar ao pecado, mas sem possibilidade de aprofundamento no caminho espiritual, por não encontrar essa “porta estreita”. Se chegam a vê-la, não conseguem atravessá-la como o jovem rico e partem tristes à vida anterior.
Como ficou evidente, nos artigos anteriores da série “Caminho Espiritual e as Moradas”, a não ser por uma graça extraordinária de Deus, o progresso espiritual não se dá pulando etapas e pegando atalhos. Só se tem a força necessária para buscar essa passagem para as segundas moradas e atravessá-la se o dom de fortaleza está atuando em plenitude. Só se pode perceber onde está esta “porta”, o que é que está me impedindo de progredir através das luzes do dom de conselho. É o dom de conselho que revela, a cada um, o que deve abandonar para ser discípulo de Cristo. Redes de pesca, um cargo importante, banca de impostos, o cadáver do próprio pai, bens e riquezas, um pós-doutorado, os campeonatos de futebol ou as novidades da moda e da maquiagem, o que o Espírito que tudo sabe lhe diz a respeito para o seu caso específico?
Se o mapa do percurso de santidade se repete, seus detalhes são moldados pelo Espírito Santo em cada alma individualmente. Ao jovem rico, Jesus mesmo deu o “conselho”, faltou-lhe a fortaleza. A que o Senhor o chama? Do mesmo modo que parecia ser um preço alto demais e impossível o abandono ao pecado, essa “porta estreita” pode parecer difícil de se atravessar. Mas, assim como as primeiras moradas nos revelam um novo (e verdadeiro) controle sobre si mesmo, uma verdadeira liberdade longe da bagunça das paixões, essa é mais uma renúncia que trará inúmeros benefícios: a via iluminativa que se inicia nas segundas moradas.
Por último, um aviso: Santa Teresa deixa claro que a vida espiritual pode regredir também, diminuir. Diferentemente do corpo humano, que cresce e se estabiliza, a vida espiritual cresce continuamente ou decresce, ou seja, diminui (7M 4,9). Se um dia você se entregou a uma vida de consagração a Deus, certamente ingressou no seguimento de Cristo, podendo desenvolver as segundas moradas. A porta estreita foi vencida. Tantos deixaram pai, mãe, às vezes noivo(a), emprego, honras e facilidades.
No entanto, se com o tempo a vida espiritual não foi alimentada, o deixar tudo se reverteu em pequenos apegos, e está na hora de abandonar as primeiras moradas para as quais se voltou e reencontrar essa passagem para o discipulado de Cristo. Santa Teresa do Menino Jesus confessava que, após deixar o pai, as irmãs e tudo que mais amava para entrar no Carmelo, agora se via presa a um “pincelzinho” que não queria ceder para o trabalho das outras carmelitas, por ser o seu preferido para a pintura.
São João da Cruz lembra que um pássaro preso por uma corrente ou por um finíssimo fio permanece sendo um pássaro preso. Assim, por mais que, com o desenrolar da vida espiritual, se tenha acesso às moradas cada vez mais profundas, é essencial não deixar de frequentar todas as que já se passou e aperfeiçoá-las. Quanto às primeiras, sempre deve ser revisado se não se começou a conceder desculpas para que o pecado mortal se reinstale na nossa vida, a vivência da paciência e da temperança e, se não estamos abandonando novamente o seguimento de Cristo para trilhar o caminho dos próprios interesses particulares. Corre-se sempre o risco de que, aquele que rompeu grilhões de ferro, volte a se prender em pequenas e frágeis teias de aranha.
Nos próximos artigos da série, vamos analisar no que consiste a vida espiritual nas segundas moradas e como podemos avançar na intimidade com Deus por meio dos novos graus de oração e da vivência do dom de entendimento.