Se aproxime de Deus

Como podemos construir e reformar as primeiras moradas?

As primeiras moradas nos levam para próximo de Deus

À medida que avançamos nesta série ‘Caminho Espiritual e as Moradas’, alguns conceitos precisam ser relembrados, para que fiquem bem firmes em nosso interior. Assim, se Deus está mais perto do que imaginamos e nos atrai a Ele para que tenhamos uma vida bem-aventurada, já aqui neste mundo, a conversão sincera e a oração são o que abrem as portas deste Castelo Interior, que é nossa própria alma. Com Santa Teresa, vimos que, embora sejam muitas as moradas (Jo 14, 2), podemos agrupá-las em sete níveis principais, os quais nos levam, cada vez mais, para próximos de Deus, que é o Senhor do castelo e habita na sétima morada, a mais interior de todas.

Ao acessar o castelo, iniciamos uma nova vida revestidos da graça santificante de Deus. Essa graça havia nos sido dada com o Sacramento do Batismo, mas a perdemos sempre que optamos pelo pecado, e a reencontramos toda vez que nos confessamos adequadamente. Se permanecermos sempre caindo e levantando, não avançaremos em nossa vida espiritual, permanecendo eternamente infantis na fé. Entrando no castelo e tendo acesso às primeiras moradas, devemos, então, preparar o Caminho para que a graça santificante não encontre resistência em nosso interior. Desse modo, ela conseguirá fazer com que Cristo viva em nós (Gl 2,20), isto é, fazer-nos verdadeiramente santos. Esse é o desejo de Deus para nós (cf. 1Tes 4,3).

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Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

Para trilhar esse caminho, no entanto, precisamos entender que as duas faculdades principais do ser humano, onde temos que trabalhar com afinco, chamam-se inteligência e vontade. Os santos padres interpretaram essas duas como sendo a imagem e semelhança de Deus que recebemos (Gn 1, 26). Nossa inteligência é a imagem da inteligência de Deus, mas não é tão perfeita quanto a original (nem dos anjos); nem por isso, tem um princípio diferente. Mal comparando, podemos dizer que a cópia nunca será o original, embora não se pareça em nada diferente deste. Nossa vontade, por outro lado, é semelhante à vontade de Deus e dos anjos, pois, como eles, somos absolutamente livres para realizar nossas escolhas, e gozamos de idêntica autonomia. Não parece ser idêntica por causa dos frutos do pecado original em nós, mas, ao avançar pelas moradas, nossa autonomia vai se tornando cada vez mais semelhante a dos seres superiores. São Tomás entende nossa “semelhança” com Deus com nossa capacidade de amar a virtude (ST I-Q93A9). Como o amor é decisão, e portanto realiza-se a partir da vontade, não existe contradição nos termos.

Resumindo: sem um domínio cada vez mais progressivo de nossa inteligência e vontade, nunca seremos santos. A santidade consiste em ser dócil à graça de Deus, que atua em nós. Isso só pode acontecer depois que a nossa própria inteligência e vontade estiverem harmoniosamente dirigindo todo o nosso ser. Se refletirmos, perceberemos que isso é óbvio, pois ninguém passa o controle de uma propriedade a outro senão é o dono, de fato, do lugar.

A via ascética é, portanto, esse grande esforço que precisamos fazer para, novamente, sermos donos de nós mesmos e agirmos pela razão e vontades livres. Aqueles que são dominados por impulsos, paixões e, frequentemente, “perdem a cabeça”, desanimam ou irritam-se diante de qualquer dificuldade, estão habitados por répteis e animais peçonhentos, como tão bem nos mostrou São João da Cruz no artigo anterior sobre o início nas primeiras moradas.

Reformando as primeiras moradas

Se a grande imagem das primeiras moradas são os quarenta anos que o povo eleito passou no deserto, o nosso foco de constante trabalho e atenção é combater, em nós, os mesmos problemas que a Palavra de Deus imputa ao povo de Israel: desobediência e idolatria.

Aqueles que acreditam já estarem livres disso e “venceram essa etapa” se enganam redondamente. São dois pontos de revisão e erradicação constantes no nosso interior. Da mesma maneira que esses dois temas voltam milhares de vezes no Antigo Testamento, eles nos assaltam milhares de vezes na nossa vida.

A construção da vida espiritual significa nos afastarmos cada vez mais da desobediência de Adão (Gn 3,11) e nos moldarmos ao obediente por excelência, o Cristo (Fl 2,8). Por isso, se a vigília constante para não cometermos mais pecados mortais nos mantém na graça santificante, precisamos fazer com que essa graça ganhe cada vez mais espaço em nós, combatendo agora a desorganização da nossa inteligência e da nossa vontade, enquanto investimos, ao mesmo tempo, na oração. Em outras palavras, se não violamos os mandamentos, isto é, não cometemos pecados mortais, não quer dizer que somos perfeitamente obedientes. A perfeição na obediência significa seguir plenamente os conselhos evangélicos e o novo mandamento deixado pelo Senhor: amai-vos uns aos outros como eu vos amo. Isso não se realiza nas primeiras moradas, mas, se não começarmos desde já, nunca chegaremos lá.

Do mesmo modo, constantemente idolatramos pessoas, opiniões, escolhas etc. Se o primeiro mandamento é colocar Deus em primeiro lugar e acima de todas as coisas, em qualquer momento, e por qualquer motivo, que invertemos essa ordem, estamos caindo novamente no pecado da idolatria. Por isso, não podemos esquecer: o combate à desobediência e à idolatria precisa ser constante em nós e durante todo o caminho espiritual por meio das moradas.

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A oração e a reflexão são o que nos impulsionam

Livres do pecado mortal, o que nos faz avançar pelas moradas são a reflexão e a oração. Mas não qualquer reflexão nem qualquer oração.

As reflexões que nos acompanharão no caminho espiritual serão o modo como poderemos dominar nossas paixões, restaurando o domínio da nossa inteligência e de nossa vontade, direcionando-as para Deus. Acabamos de ver que a desobediência e a idolatria precisam ser partes constantes de nossa reflexão, para nos reorientarmos constantemente para Deus. Mas para lidar com as paixões, ou seja, nossos vícios, sentimentos e desejos desordenados, existem duas paixões principais que devem ser vencidas. Como um castelo de cartas, se investirmos nosso tempo e dedicação em combatê-las ferozmente, a recompensa será que as outras paixões e vícios vão caindo logo após.

Percebemos isso quando vemos que Jesus não só reafirmou a validade dos dez mandamentos, mas elevou dois deles a um nível de exigência muito mais alto. Assim, não basta não cometer adultério, somente o desejo ilícito sobre alguém já é pecado (Mt 5,28). Do mesmo modo, não basta não matar, somente o desejo do mal de alguém ou o desprezo dessa pessoa em seu coração, já é pecado grave (Mt 5,22). Assim, ele nos dá a chave para vencermos todas as paixões da alma, atacando fortemente as duas principais: a concupiscência e a ira.

Podemos atacá-las por duas vias: buscando bloquear a sua atuação em nós e promovendo as virtudes contrárias a elas. No nosso caso, as duas que precisamos desenvolver nas primeiras moradas se chamam Temperança e Paciência.

Temperança não só em questões sexuais, mas em tudo que promove em nós o desejo do prazer e do alívio. Assim, é preciso desenvolver a virtude da temperança no comer, no dormir, assistir à TV, descansar e também na atividade sexual. Tudo isso é bom, justo e necessário. Mas se vivemos sem freios nem temperança, afundamo-nos no vício da concupiscência. Esse vício é uma das portas de entrada de todos os outros.

Do mesmo modo, a virtude da paciência é condição fundamental para progredirmos nas moradas. Jesus reafirmou isso inúmeras vezes, principalmente quando disse “aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Sem mansidão não existe reino de Deus em nós, não existe docilidade ao Espírito Santo, não existe conversão verdadeira. Quantas bobagens você já fez e já falou na sua vida movido pela raiva ou ira? Lembre-se de que as desculpas “sou assim mesmo”, “às vezes fico nervoso” e “quando eu me espalho, ninguém me junta” já não cabem mais num caminho espiritual sério. Como diz São Paulo, chega uma hora em que precisamos crescer e largar as coisas de criança (1Cor 13,11).

Assim, para permitir que Deus encontre um terreno propício em nós, nessas primeiras moradas, precisamos atacar firmemente: a desobediência, que nos leva a fazer o que queremos em vez de nos preocuparmos com a vontade de Deus; a idolatria, que nos leva a colocar muitas coisas e pessoas em primeiro lugar na nossa vida; a falta de paciência, que nos faz querer tudo do nosso jeito e na hora que achamos certo; a falta de temperança, que nos leva a nos perdermos vivendo somente o que nos dá prazer.

Difícil? O Reino dos Céus é para os violentos mesmo (Mt 11,12). Lembre-se, no entanto, de que, se chegamos até aqui, é porque já rompemos violentamente com o pecado mortal e procuramos viver em estado de graça santificante. Então, um passo firme de cada vez e iremos longe.

No próximo artigo, veremos qual o tipo de oração nos ajuda a não mais reformar, mas realmente construir as moradas do Castelo Interior em nós.