Estamos em 1922, há cem anos atrás. Inicia-se aqui uma nova etapa na vida de Edith Stein, como “oficialmente” convertida, bebendo com muita liberdade das fontes do pensamento cristão e fortalecendo-se com a frequência assídua aos sacramentos e à Santa Missa, apoiada sempre pela direção espiritual de algum sacerdote.
A filósofa Edith Stein entra para a Igreja católica
Edith havia percorrido um longo caminho de conversão até chegar ao seu batismo, em primeiro de janeiro de 1922, e à sua crisma, na capela do bispado de Espira (em alemão “Speyer”), em dois de fevereiro, na festa de apresentação de Jesus no Templo. Seu processo de conversão, que não teve nada de “instantâneo”, como muitas vezes se costuma afirmar, continuará até a sua morte, que ocorrerá em 1942, no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Tentaremos, nesse ano de 2022, seguir esse seu percurso, buscando aprofundar, com a ajuda de alguns de seus comentadores, especialmente de Angela Ales Bello – filósofa italiana, renomada especialista em Edmund Husserl e Edith Stein –, o modo como Edith o vivenciou a sua conversão no seu interior: em sua mente e em seu coração. O intuito não é apenas biográfico, informativo, pois acreditamos que uma maior compreensão desse aspecto da vida de Edith, Santa Teresa Benedita da Cruz, nos desvelará alguns elementos que poderão nos ajudar a discernir e aprofundar o nosso próprio processo de conversão. O convite que fazemos aqui, no ano em que comemoramos 100 anos do ingresso de Edith Stein na Igreja católica (1922 – 2022), é de fazer um caminho, trilhar um percurso junto com ela.
Vimos, no último artigo, que Edith recebe a comunhão no dia e de janeiro de 2022, dia seguinte de seu batismo na Igreja católica. Sabe-se que, após o seu batismo, Edith receberá a comunhão diariamente, participando da Santa Missa, mesmo nos períodos em que esteve morando com sua família. Tivemos a oportunidade de conhecer a Igreja que ela frequentou durante mais de 10 anos, a que se encontra próxima à residência da família Stein na Breslávia – atual Wroclaw, Polônia. É a igreja de São Miguel Arcanjo, de arquitetura neogótica, construída em 1120, destruída quase completamente em 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, mas reconstruída logo depois, seguindo a arquitetura original. Quando estava visitando a família, Edith costumava sair de casa às cinco e trinta para participar da missa logo cedo e entregar o seu dia, oferecendo-o a Deus desde as suas primeiras horas. Lá se encontra uma pequena e bonita capela que foi feita em homenagem a ela, onde são guardadas algumas relíquias e uma escultura que relembra a sua morte no campo de concentração. Na Igreja de São Miguel Arcanjo também é homenageado o Papa João Paulo II, que santificou Edith Stein em 1998 e a proclamou copatrona da Europa em 1999.
Em direção a um novo nascimento
No final do ano passado, havíamos abordado o novo universo da fé, que passou a ter um sentido cada vez mais nítido e profundo para Edith Stein. Falamos do seu primeiro encontro com os convertidos que estudavam com o professor Edmund Husserl, durante o período em que se mudou para Gotinga, em 1913, passando pela defesa de sua tese doutoral sobre o fenômeno da empatia em 1916, seguido pelo tempo em que foi assistente de usserl, quando estreHusserl em Friburgo, quando este já tinha se transferido para a universidade daquela cidade.
Vimos também que, em 1918, Edith deixa esse cargo para dedicar-se às suas próprias pesquisas, sempre aspirando poder se tornar professora de filosofia na Universidade pública alemã. Ela também estava vivenciando uma profunda crise interior, buscando a verdade sobre si mesma e sobre a sua missão específica no mundo. Após uma breve e frustrada passagem pela vida política e uma nova tentativa, fracassada, de tentar ascender a uma cátedra universitária, Edith se lança na escritura de um texto em que analisa a essência do Estado, sua relação com o direito e sua importância para a vida comunitária de um povo: Uma investigação sobre o Estado1. A ideologia nacional-socialista já estava despontando, e ela pressente a importância de escrever sobre esse tema. Infelizmente não foi ouvida e acabou se espalhando a ideologia nazista que afirmava a necessidade de um governo forte e centralizado para a Alemanha: o Terceiro Reich. Esse livro sobre o Estado será publicado pela primeira vez em 1925, após o ingresso de Edith Stein na Igreja católica.
De frustração em frustração, Edith vai sendo conduzida a um encontro com a pessoa de Jesus Cristo, que ela gosta de chamar de Salvador. Como era uma pessoa muito reservada e esperava bastante para expressar publicamente alguma posição pessoal, não foram encontrados muitos registros sobre esse período que antecede a entrada de Edith na Igreja católica. Sabemos que ela, seguindo o ritmo do método fenomenológico, foi deixando amadurecer a consciência da presença de Cristo em seu interior: a vivenciou primeiramente em sua mente – ao analisar o fenômeno religioso com o método de Edmund Husserl – e em seu coração – admirando a autenticidade da relação com Deus de seu mestre e outros convertidos do Círculo de Gotinga.
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Edith faz algumas pequenas alusões a sua busca de Deus em seus escritos autobiográficos: Vida de uma família Judia, que já citamos no artigo passado. Mas todo o período entre 1917 e 1933 não se encontra mais registrado nesses seus escritos, que termina o seu relato com o convite feito por Husserl para que ela se tornasse a sua assistente, logo após a defesa de sua tese em 1916. No entanto, nos chama a atenção um fato narrado por Edith quando fala da sua viagem para Friburgo no final de 1916, dirigindo-se para fazer o exame final e defender a sua tese. Ela relata que parou em Frankfurt e lá se encontrou com Pauline Reinach, sua amiga. Elas visitaram vários locais da cidade velha relacionados com Goethe, que viveu nessa cidade como representante da Prússia no Parlamento, de 1851 a 1859. Contudo, o que mais impressionou Edith não foram essas visitas a importantes lugares históricos, mas uma cena que ela presenciou e afirma nunca mais ter saído de sua memória.
Por alguns minutos, nós entramos na catedral. Enquanto estávamos lá, num ambiente silencioso e respeitoso, chegou uma mulher com sua cesta de compras e ajoelhou-se para fazer suas orações. Para mim, aquilo era algo totalmente novo. Era só para o culto religioso que se ia às sinagogas e às igrejas protestantes que eu conhecia. Agora, eu via ali alguém que, em meio a sua preocupações cotidiana, dirigia-se à igreja deserta para uma conversa íntima (EA, p. 516).
Tampouco encontramos muitas informações sobre esse período em outro escrito autobiográfico de Edith Stein: Como cheguei ao Carmelo de Colônia2, cujo relato se inicia em 1933. Contudo, neste último relato, Edith faz uma rápida retrospectiva do ano de 1921, quando leu o Livro da Vida de Teresa d’Ávila, decidindo pedir o batismo na Igreja católica. Ela afirma que, naquele momento, já havia desejado entrar para o Carmelo como religiosa, mas não o fez por causa de sua mãe, que tinha ficado muito abalada quando soube que sua filha, judia, tinha se tornado uma cristã católica.
Apesar de não termos muitos relatos para nos acompanhar nesse percurso de conversão de Edith, podemos aprofundá-lo um pouco mais, ou ainda, fazer uma “escavação arqueológica” mais profunda em seu interior, partindo das cartas que ela escrevia ao seu grande amigo, o fenomenólogo polonês, Roman Ingarden. Usaremos como auxílio o último livro de Angela Ales Bello, Assonanze e Dissonanze – Dal diario di Edith Stein 3 (Assonâncias e Dissonâncias – Do diário de Edith Stein), onde a Autora coloca em diálogo seus relatos pessoais com um suposto “diário” de Edith Stein, que se inicia com o período relatado nos escritos sobre a sua família e termina com a sua morte. Ales Bello utiliza seu extenso conhecimento de toda a obra de Edith Stein, visto ter traduzido do alemão para o italiano vários de seus textos e revisados tantos outros, tornando-se a responsável pelas traduções italianas das obras completas de Stein. Ela escreveu o que seria um diário de Edith Stein utilizando os seus escritos autobiográficos, todos os livros de sua autoria, publicados na edição crítica alemã (ESGA), e o longo epistolário de Edith4.
Segundo Ales Bello, em sua carta de 10 de outubro de 1918 a Roman Ingarden, três anos antes da suposta conversão de Edith Stein, ela escreve contando que está se aproximando, há algum tempo, de um “cristianismo absolutamente positivo”, que a havia libertado de uma vida em que se sentia oprimida e lhe havia dado forças para aceitar novamente a vida, com gratidão: “Portanto, posso falar de um renascimento, no sentido próprio da palavra” [A. e D., p. 105; OCD I, p. 654].
No próximo artigo, falaremos desse “renascimento” iniciado a partir de 1918, e do modo como Edith foi se deixando transformar pela presença de Jesus Cristo em seu interior.
Referência Bibliográfica:
1.Edith STEIN, Eine Untersuchung über den Staat. Edith Stein Gesamtausgabe, vl. 7. Freiburg–Basel–Wien: Herder, 2006 [ESGA 7]. Acaba de ser lançada a versão em português desse texto, pela editora Paulus, que está publicando a Coleção das obras de Edith Stein: Uma investigação sobre o Estado. Trad. Maria Christina S.de Souza Campos. Ver. Tec. Juvenal Savian Filho. São Paulo: PAULUS, 2022.
2. Edith STEIN. Uma contribuição para a crônica do Carmelo de Colônia. In Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. Trad. Maria do Carmo Wollny e Renato Kirchner. Rev. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Paulus, 2018. – Coleção Obras de Edith Stein. Esse texto está sendo referido nesses artigos por: EA (Escritos Autobiográficos).
3.Angela Ales Bello, Assonanze e Dissonanze – Dal diario di Edith Stein. Milano-Udine: MIMESIS ED., 2021. Faremos a tradução livre do italiano para o português das passagens que serão mencionadas e nos referiremos a esse livro por [A. e D.].
4. As cartas que Edith enviou para seus amigos e familiares entre 1916 e 1942 foram guardadas por eles e entregues, depois de sua morte, aos carmelitas e ao responsáveis pela edição das obras de Edith. NA edição crítica alemã, perfazem três volumes: ESGA 2, ESGA 3 e ESGA 4, sendo o quarto volume apenas das cartas que ela enviou para Roman Ingarden. Elas foram publicadas em espanhol, anteriormente a essa edição crítica, pela Ordem dos carmelitas descalços, juntamente com seus escritos autobiográficos, constituindo o primeiro volume: Edith Stein – Obras Completas I – Escritos autobiográficos y cartas. Burgos–Vitoria–Madrid: Ed. Monte Carmelo–Ed. el Carmen–Ed. de Espiritualidad, 2002, p. 525 – 1702 [OCD I].
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