Sendo honesto, se, no início deste ano, alguém tivesse dito para mim que as igrejas seriam fechadas em breve e perderíamos a possibilidade de receber os sacramentos, essa pessoa, certamente, se confrontaria com o meu completo descrédito. Mais que improvável, impossível!
Diante da atual situação, não posso deixar de louvar a beleza eterna das Sagradas Escrituras que, continuamente, nos alertam sobre a ilusão de nos confiarmos na força dos homens, no seu poder, nas suas estruturas e capacidades. Uma das passagens mais belas sobre esse tema está nos Salmos: “Não é a força do cavalo que Lhe agrada, nem se deleita com os músculos do homem, mas agradam o Senhor os que o respeitam, os que aguardam, os que confiam esperando seu Amor” (Sl 146, 10-11).
Toda a confiança na força de nossos “cavalos” econômicos, democráticos, instituições políticas e sociais, e capacidades “musculares” de homens, governantes e estruturas milenares foram destruídas em poucos meses. Permanecem de pé somente os que respeitam o Senhor, “aguardam e confiam em seu Amor”. De pé, mas interiormente, como ressuscitados! Exteriormente, de joelhos, como o resto da humanidade.
De joelhos não exatamente como aqueles que se prostraram perante os golpes recebidos, alquebrados, mas os que estão prostrados em respeito e confiança na misericórdia que virá. Aqueles que reconhecem que só se poderá elevar aquele que primeiro se ajoelha perante o Senhor de todas as coisas, só produz fruto a semente, que livremente se entrega à morte na terra.
Como viver sem os sacramentos? Sem se confessar e sem receber a comunhão?
Dentre tantas questões urgentes e concretas que se levantam neste tempo, mas que não tenho competência para tocar, procuro responder uma: como viver sem os sacramentos?
Diferentemente de várias outras perguntas que surgiram neste ano, essa não é uma questão nova. Temos total apoio na história da Igreja, entre os Santos Padres e os santos e doutores para respondê-la. Essa foi uma realidade vivida por inúmeros religiosos e santos ao longo dos tempos: uma vida sem acesso constante aos sacramentos, principalmente da Reconciliação e da Eucaristia.
Sobre a Reconciliação, ou Confissão, a força do Magistério da Igreja já se manifestou. E tem poder para isso.
O tripé que mantém as estruturas da Igreja
Lembre-se de que os católicos, se são católicos, reconhecem o tripé que mantém as estruturas da Igreja firmes perante as portas do inferno: as Sagradas Escrituras, a Sagrada Tradição e o Sagrado Magistério. Elas se entrelaçam e se sustentam. Num breve exemplo, sabemos que não haveria texto bíblico, ou Sagradas Escrituras, se a Tradição não reconhecesse como verdadeiros e confiáveis seus autores, se o Magistério não atestasse sua autenticidade como textos inspirados. Vide os inúmeros “evangelhos”, “cartas” e “livros” que você não encontra nem nunca encontrará na edição da sua Bíblia, pois foram categorizados como “apócrifos”. Ou seja, não são dos autores que lhes são atribuídos ou, se são, não foram inspirados pelo próprio Espírito Santo, o verdadeiro autor das Sagradas Escrituras.
Voltando ao nosso assunto, o Papa Francisco, pelos poderes que lhe são concedidos por ser o Pontífice da Igreja, cabeça atual do Sagrado Magistério, relembrou uma flexibilização prevista para o Sacramento da Reconciliação ou Confissão, e que se torna relevante nestes tempos de pandemia: o cristão, sem acesso imediato a um sacerdote, pode realizar uma perfeita contrição de seus pecados e retornar à Graça Santificante, mesmo antes de receber a absolvição sacramental.
Como eu disse, relembrou, pois isso está previsto em um documento do Magistério, o Catecismo da Igreja Católica, onde consta:
Entre os atos do penitente, a contrição vem em primeiro lugar. Consiste “numa dor da alma e na detestação do pecado cometido, com a resolução de não mais pecar no futuro” (Concílio de Trento).
Quando brota do amor de Deus, amado acima de tudo, a contrição é “perfeita” (contrição de caridade). Essa contrição perdoa as faltas veniais e obtém também o perdão dos pecados mortais, se incluir a firme resolução de recorrer, quando possível, à confissão sacramental (CIC 1451-1452).
E o que isso quer dizer?
Na prática, isso quer dizer que se percebemos que cometemos uma falta quanto aos mandamentos, quanto ao amor que devemos a Deus ou aos outros, precisamos nos recolher, meditar sobre o ocorrido e, com o firme propósito de não mais cometer a mesma falta ou outros pecados, pedir perdão a Deus. Juntamente com a disposição de não mais pecar, precisa existir (e ser cumprida ao seu tempo) o desejo de procurar um sacerdote para buscar a absolvição sacramental assim que possível.
É autoevidente, neste período de pandemia, a impossibilidade de se confessar com um sacerdote. Peço, entretanto, que guarde no seu coração também esta obrigação: se, em um mês, em um ano ou em dez, você voltar a ter a possibilidade de se confessar sacramentalmente, faça o quanto antes e relate os pecados que cometeu e foi perdoado por Deus através da contrição de caridade.
Na vida “normal”, eu utilizava esse recurso com frequência: perante a percepção da falta, procurava, de coração contrito e com absoluta atenção para não voltar a errar, pedir imediatamente perdão a Deus para não perder o estado de Graça Santificante. No dia seguinte, ou, se fosse impossível, em 2 ou 3 dias, conseguia me confessar com um sacerdote expondo o mesmo pecado e esperando a absolvição sacramental e a penitência imposta.
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Como me unir a Jesus sem a Eucaristia?
E quanto à Eucaristia? É possível experimentá-la de longe? Completamente, não. No entanto, durante a Santa Missa, é possível vivenciar a Comunhão Espiritual. Convido você, depois de terminar este artigo, a entender melhor sobre o que é isso acessando aqui.
Acrescente-se que, na Solenidade de São José, o Papa Francisco nos deu uma linda oração para realizarmos a Comunhão Espiritual, principalmente enquanto assistimos à Missa pela TV neste período de pandemia:
Aos vossos pés, ó meu Jesus, prostro-me e ofereço-Vos o arrependimento do meu coração contrito, que mergulha no Vosso e na Vossa santa presença. Eu Vos adoro no Sacramento do Vosso amor, desejo receber-Vos na pobre morada que meu coração Vos oferece. À espera da felicidade da comunhão sacramental, quero possuir-Vos em Espírito. Vinde a mim, ó meu Jesus, que eu venha a Vós. Que o Vosso amor possa inflamar todo o meu ser, para a vida e para a morte. Creio em Vós, espero em Vós. Eu Vos amo. Amém.
Como dito anteriormente, a Comunhão Espiritual não substitui completamente a Comunhão Eucarística. Embora, segundo Santo Tomás de Aquino “podemos mudar-nos em Cristo e incorporar-nos a ele pelo desejo do espírito, mesmo sem receber este sacramento [da Eucaristia]” (Suma Teológica, III-Q73A03). Diferentemente de outros sacramentos, “a Eucaristia contém algo sagrado em si mesmo, absolutamente a saber: o próprio Cristo” (ST III-Q73A01). Dessa forma, o contato físico com o corpo e/ou sangue de Cristo produz a vida da graça e, semelhantemente ao efeito que a comida e a bebida material tem no nosso organismo, este alimento sustenta, aumenta, restaura e deleita. Ou, segundo Santo Tomás: “Segue-se, pois, que a graça cresce e a vida espiritual aumenta, toda vez que se recebe realmente este sacramento” (ST III-Q79A01).
Todos podem receber as graças?
Nunca é demais lembrar, por outro lado, que aqueles que não mantêm disposições honestas quanto à vivência sacramental e não se preocupam em se manter longe do pecado com afinco, não recebem essas graças. “Da mesma maneira que a paixão de Cristo não surte efeito naqueles que se relacionam com ela de maneira indevida, assim também não obtêm a glória eterna aqueles que recebem este sacramento de maneira indigna” (ST III-Q79A02). Todo aquele que tem consciência de estar em pecado mortal, não só fica impedido de receber os frutos da Eucaristia, mas, inversamente, acumula sobre si mais pecados (1Cor 11,29).
Embora a Eucaristia seja o verdadeiro sacramento de união com Deus, através do corpo e sangue de Cristo, essa união pode e deve ser buscada por outros meios de forma muito eficaz. Notadamente através da oração pessoal e da reflexão, como nos ensina Santa Teresa de Jesus, explicado em detalhes aqui! Esse caminho ou percurso espiritual que nos faz tão íntimos de Deus a ponto de estar em permanente e constante união com Ele, mesmo sem estar recebendo o Sacramento da Eucaristia, foi descrito na série Caminho Espiritual e as Moradas e pode ajudá-lo a viver essa experiência passo a passo.
Quem sabe, como Santa Elisabete da Trindade em sua “Elevação à Santíssima Trindade”, você possa dizer “[…] ajudai-me a esquecer-me de mim mesma para fixar-me em vós, imóvel e pacífica, como se minha alma já estivesse na eternidade. […] que, em cada minuto, eu me adentre mais na profundidade de vosso Mistério.” E, algum dia, escutar de Cristo o que ela ouviu enquanto se queixava que não poderia mais receber diariamente o Sacramento da Eucaristia: “não tendes necessidade do Sacramento para vir até mim!” (Santa Elisabete da Trindade, Nota Íntima 10).