O descompromisso com a verdade deixa as palavras soltas, profusas, invasivas, instintivas e fantasiosas
Talvez, você seja como eu: há noites em que, após um dia de trabalho, não consigo mais ouvir uma só palavra. “Meu Deus! São palavras demais para um dia só!”. Penso, ansiando por um pouco de silêncio. Há pesquisas que levantaram o número espantoso de imagens a que somos submetidos a cada dia. No entanto, nunca ouvi dizer que se tenha pesquisado o número de palavras a que somos expostos a cada dia.
Palavras na TV, palavras na Internet, no jornal, nas revistas, nos livros, nas rádios, nas músicas, nos supermercados, nos rótulos, nos outdoors, nos informativos luminosos sobre o trânsito, nos discursos dos políticos, nas pregações, nas conversas! Palavras em português, palavras em inglês, palavras no vocabulário misterioso dos grafiteiros! Palavras em letras imensas, em grafia ínfima! Palavras faladas, gritadas, sussurradas, cantadas! Palavras simples e eruditas, bem pronunciadas e ininteligíveis, palavras entrecortadas, espichadas e ecoadas.
Centenas, milhares de palavras em um só dia! E olhe que é um dia normal, sem retiros, sem estudos, sem pesquisas especiais. Somos submetidos, de fato, a um bombardeio de palavras em bem maior número do que poderíamos suportar e permanecermos mentalmente sadios.
Talvez, como eu, você, perdido em meio a tantas palavras, sinta falta de gente, sim, de gente, de pessoas, aquelas que são muito e falam pouco, que olham lá no fundo do coração da gente e dão um sorriso. Aquelas humildes que percebem que a gente existe e que não são elas nem suas necessidades o centro do mundo. Aquelas pequenininhas e ainda tenras, que se aninham em nossos braços e adormecem, esquecidas de tomar conta de si mesmas. Outras já velhinhas e endurecidas, que se apoiam na gente para subir o menor degrau, já incapazes de tomar conta de si.
Talvez, como eu, você também sinta que há palavras demais e pessoas de menos.
Talvez se pergunte por que será assim, uma vez que palavra e pessoa deveriam vir sempre juntas. Pois é… Deveriam, mas não vêm! Há, pelo contrário, uma distância cada vez maior entre palavra e pessoa. Diz-se o que se quer dar a entender e não o que se é. Fala-se muito da própria imagem e muito pouco de si. Gasta-se palavras à toa, em um verdadeiro desperdício, sabendo que elas sempre se renovam e recriam, em um estoque infinito, sem compromisso com a verdade que as limita e domestica. Quem sabe seja esse o problema.
Descompromisso com a verdade
O descompromisso com a verdade deixa as palavras soltas, profusas, invasivas, instintivas e fantasiosas. É! Deve ser isso mesmo, pelo menos em parte. Sem a verdade a pastoreá-lo, o rebanho das palavras foge, enlouquecido, invade as cidades, as mentes, os ares. Sem o compromisso moral a cerceá-las, tornam-se como que autônomas, desprendidas das pessoas que as proferem, libertinas, indomáveis, voluptuosas. Onipotentes e imaturas, tomam vidas por si mesmas e encarregam-se de servir à mentira, escondendo pessoas, dissimulando mal-feitos, abafando pensamentos, maquiando desejos, distorcendo fatos. O resultado é o que vemos: palavras demais, pessoas de menos. Informações não confiáveis em pessoas não conhecíveis. Palavras tiranas, dominadoras, senhoras de escravos que parecem acreditar no que parecem dizer, a tal ponto que nem senhoras nem escravos têm mais certeza de nada. Palavras que escravizam pessoas. Pessoas que pensam escravizar palavras sem perceber que, na verdade, são escravizadas por elas!
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Talvez, como eu, você tenha saudade, muita saudade de coerência. Saudade de mergulhar na Palavra, que é Pessoa e que é Verdade. Saudade do poder de gerar vida daquela Palavra em que você foi criado. Saudade de ouvi-la chamar você pelo nome. Saudade de senti-la pulsando em seu passado, seu presente, seu futuro, junto com o bater do seu coração: “Amo-te! Amo-te! Amo-te!”.
Como eu, quem sabe, você sinta falta de uma Palavra e Pessoa que sejam uma coisa só, sem divisão, sem incoerência, sem máscara, sem morte. Falta da Pessoa-Palavra que entra como um fino estilete lá no mais fundo do mais fundo de sua alma e lhe sarja os tumores. Falta da Palavra-Pessoa que, porque é Verdade, liberta e, por libertar, é vida e dá vida, é sentido e dá sentido, é via e mostra a via.
Palavra-Pessoa-Verdade-Amor
Como eu, você certamente tem sede de ouvir o som da Palavra dita no eterno coração da Trindade, da Pessoa gerada na Palavra-Amor da Pessoa que a gera, da Palavra-Amor-Pessoa-Verdade que, sem precisar proferir som, apenas é e se faz Palavra pela entrega. Sede de contemplar a Pessoa-Palavra que faz da entrega e acolhida de Amor seu segredo a comunicar para que nós, escravizados pelas palavras mancomunadas com a inverdade, sejamos libertos.
Nossa sede pode ser saciada; essa nossa saudade pode ser atendida; nossa carência, preenchida. De nossas mãos, pelo preço de quase nada, pode passar ao nosso coração a Palavra-Pessoa, inteiramente coerente, a Palavra-Verdade, inteiramente libertadora, porque inteiramente Amor. A Palavra se fez gente, a Pessoa se fez homem, a Verdade foi revelada e, revestida de palavras, colocou-se ao nosso alcance, revelou-se por gerações, dividiu-se em livros, colocou-se nas prateleiras das lojas, acessível a todos. Fez-se traduzir na língua de todos, fez-se digitalizar, fez-se divulgar, fez-se filmar, fotografar, reproduzir. A Palavra-Pessoa-Verdade-Amor, aquela que não se cansa de amar, que não se cansa de libertar, está à nossa disposição. Oferecida. Entregue. Vinda para os Seus. Acolhamo-la. Descansemos na Paz da Palavra Única.
Maria Emmir Nogueira
Cofundadora da Comunidade Católica Shalom