Sem a páscoa, o ano fica pagão

Sem a páscoa, o ano fica pagão. Com ela, podemos seguir em frente, que o rumo parece garantido. Que pode significar a páscoa, no entrevero de 2002, carregado de interrogações? Certamente, o ano não vai ficar diminuído em sua carga pesada. Mas à luz da páscoa podemos situar melhor em que direção nos colocamos. Pois na verdade, mais que um acontecimento, a páscoa é uma progressiva mudança de expectativas, fazendo com que do meio dos sinais de morte encontremos o rumo da vida.

A festa da páscoa é a mais antiga da humanidade. Remonta aos rituais da passagem do inverno para a primavera, em que a natureza recobra ânimo e experimenta o vigor da vida que se renova em folhas, flores e frutos novos. Depois, a páscoa recebeu dimensão histórica, ao assinalar a saída do Egito do povo hebreu, que sacudiu o peso da escravidão e partiu em busca da liberdade na terra prometida. A celebração deste evento passou a simbolizar a identidade nacional dos israelitas, ao mesmo tempo que fortalecia suas esperanças de verem cumpridas as promessas de plena realização dos seus sonhos de vida em abundância.

Foi no contexto da páscoa dos hebreus que Jesus concluiu sua vida, ligando-a intrinsecamente ao seu significado, ao mesmo tempo que o ultrapassava, alargando-o para toda a humanidade. A maneira, portanto, como Jesus celebrou a páscoa, e os desdobramentos suscitados por ela, são a chave para entender o alcance de sua mensagem e a força de sua proposta.

Aí precisamos nos dar conta do lance decisivo, que atesta a eficácia do fato novo que a páscoa cristã introduz, e que está ligado à fé na ressurreição de Cristo. Foi tão grande o impacto causado, que chegou a produzir uma profunda mudança de ordem cultural, religiosa e social, e que consistiu na inversão da semana hebraica, na passagem do sábado para o domingo como dia santificado. Só mesmo um acontecimento de profundas repercussões vitais poderia produzir esta mudança. Nada mais arraigado entre os judeus do que a santidade do sábado. Mudá-la do último para o primeiro dia da semana só poderia ser fruto de uma profunda mudança de expectativas.

Por isto, quem não admite a ressurreição de Cristo, fica devendo a explicação desta surpreende mudança de calendário. Na verdade, aquele “primeiro dia da semana” tem uma abrangência de simbolismo, que expressa o verdadeiro significado da Páscoa cristã. E’ o arco de um dia inteiro, da madrugada até a noite avançada, que indica a progressiva mudança de expectativas, que a partir deste acontecimento a história humana pode ir assumindo.

O Evangelho afirma que a ressurreição se deu na madrugada. A morte foi no cair do dia. A ressurreição se dá nos albores da manhã. Assim, é todo um dia que se apresenta pela frente, é todo o desenrolar da história que recebe novo significado à luz deste acontecimento. A ressurreição não é fato isolado, é dinamismo a perpassar todo o universo, é madrugada que pede todo um longo dia para se realizar.

Assumir este dinamismo, e deixar-se animar por ele, é o desafio que cada páscoa nos apresenta de novo. Na dinâmica da história, há os que madrugam, como as mulheres que chegaram cedo ao sepulcro e foram as primeiras a sentirem o sobressalto que iluminou seus corações e as tornou mensageiras de esperança inaudita. Depois, há os que se juntam ao longo do dia. Existem os retardatários da meia tarde, como os discípulos de Emaús, que insistem em seguirem na contramão da esperança e buscam refúgio nos redutos do seu isolamento. Sempre há os que chegam na última hora, noite a dentro, mas ainda em tempo de perceberem que a própria noite fica agora iluminada com o esplendor da surpreendente presença de Cristo, atestando que o rumo da história não está com a morte, mas nas mãos da vida. Além dos Tomés que precisam da repescagem do domingo seguinte, para entrarem na roda dos iluminados pela fé.

A Páscoa nos interpela sobre o rumo de nossos passos e sobre as motivações de nossos corações. E nos acorda para o longo dia que temos pela frente, na urgência de levar a todos a esperança que tem a força de reverter as expectativas da história humana.