Há muitas moradas na casa do Pai

I- Há muitas moradas na casa do Pai

A vitória do Ressuscitado, que inclui a hora dele passar deste mundo ao Pai (Jo 13,1), apresenta-nos a futura realização plena do homem através da imagem da habitação na morada divina (Jo 14,1-12). Desde as primeiras afirmações da fé, a subida de Cristo à direita de Deus aparece como expressão necessária da sua exaltação celeste e do seu senhorio messiânico. Tal afirmação traz em si uma dimensão salvífica para o homem. Era necessário não só que Jesus enfrentasse a morte na sua condição humana e a vencesse para nós, mas também nos elevasse à companhia de Deus, preparando-nos um lugar.

Aquele que desce até nós na encarnação e na humilhação da morte de cruz é também o mesmo que sobe às alturas do Todo-poderoso. No gesto de descer e no subir se encontram a realização da promessa: vou preparar-vos um lugar (Jo 14,2). Sem ser elevado com Cristo o homem não pode atingir a felicidade que aspira e para a qual foi criado. Através de Jesus, Caminho, Verdade e Vida pode o homem participar da condição de filho e da herança ou da convivência em uma das muitas moradas do Pai. Neste nível de compreensão a imagem estática cede a do relacionamento dinâmico. Não é tanto um lugar prefixado que Cristo nos prepara, mas uma relação de amor filial para com Deus. A mensagem deste domingo toca no cerne da esperança cristã, que se plenifica no futuro relacionamento dos filhos com o Pai, e repropõe Jesus, como mediador e caminho para a realização desta expectativa.

II- O conteúdo das mensagens bíblicas
1– Lê-se o relato da instituição e investidura do ministério dos Sete (At 6,1-7). Enquanto os hebreus constituíam os judeus que permaneceram ou voltaram à Palestina após o exílio, os helenistas eram os judeus que ficaram na Diáspora. Os primeiros falavam o aramaico e liam as escrituras em hebraico na sinagoga, centrando no templo sua vida religiosa. Os outros falavam grego e liam as escrituras segundo a tradição dos Setenta, observando a Lei com costumes estrangeiros inaceitáveis pelos outros de observância estrita. Por isso, havia uma cisão religiosa entre os dois grupos, acentuada pela diferença da língua e da cultura, a ponto dos helenistas possuírem em Jerusalém sinagogas próprias. Ora, os primeiros cristãos eram provenientes dos dois grupos e a tensão seria inevitável.

O contexto da perícope supõe a situação dos Doze que davam mais assistência aos pobres que falavam sua língua, suscitando a murmuração dos helenistas (v.1). A investidura dos sete desvenda a tensão existente entre o grupo dos hebreus e os dos helenistas. Em ordem à paz, cria-se ao lado do ministério dos Doze, mais ligado à difusão da Palavra e à oração (vv.2.4), o ministério dos Sete para servir às mesas (v.2). Dentre os próprios helenistas é feita a escolha. No entanto, não se ocuparão somente do serviço da caridade, mas serão os primeiros divulgadores da Palavra entre os helenizantes, pagãos e prosélitos (6,8-8,40). Observe-se o concurso diferenciado da comunidade e da hierarquia em ordem à escolha e à decisão (vv.3.5) e a investidura dada pelos apóstolos pela oração e a imposição das mãos (v.6). Igualmente é digno de nota o critério de discernimento na escolha comunitária: homens repletos do Espírito e de sabedoria (v.3c).

2– A Segunda leitura versa sobre o novo Povo de Deus (1Pd 2,4-9). O antigo Povo fora constituído junto à montanha do Sinai, mas não podia dela se aproximar (Ex 19,23-24). O novo Povo, porém, foi constituído junto a outra rocha, Cristo ressuscitado, pedra viva, a quem é convidado a se achegar (v.4). Portanto, o novo Povo se congrega em torno da pessoa de Jesus, que se manifestou Messias pela sua morte e ressurreição, pedra rejeitada pelos homens, mas eleita e preciosa diante de Deus (v.4). Reunidos em torno de Jesus Ressuscitado, os fiéis se constituem um edifício espiritual, dedicando-se a um sacerdócio santo, para oferecerem sacrifícios espirituais agradáveis a Deus, pela mediação do mesmo Cristo (v.5). Desta maneira, como os sacrifícios sangrentos selaram a Antiga Aliança (Ex 24,5-8), a adesão a Cristo pela fé e o compromisso (vv.6-7) se constitui no sacrifício espiritual dos cristãos na nova Aliança (v.5). Cristo se torna pedra de tropeço e rocha que faz cair os membros do antigo Povo por não acreditarem na Palavra (v.8), de modo que perdem as prerrogativas transmitidas ao novo povo: serem raça eleita, sacerdócio real, nação santa, propriedade divina (v.9). Os cristãos constituem assim o nova Israel: Vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o Povo de Deus (v.10), povo escatológico porque todas as virtualidades do antigo nele encontram seu verdadeiro cumprimento.

3– São lidos alguns trechos do discurso de Jesus após a Ceia (Jo 14,1-12). Os apóstolos manifestam sua inquietude e sua tristeza diante do anúncio da traição de Judas, da partida de Jesus e da negação de Pedro. O Senhor deseja encorajá-los na fé: Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim (v.1). Anuncia-lhes, então, o reencontro na casa do pai em uma de suas moradas, falando-lhes da preparação de um lugar (vv.2-3). Os judeus compreendiam o templo de Jerusalém como morada divina, porém Jesus aludia à morada do Pai como ponto final de sua peregrinação terrena (v.3), um para onde cujo caminho os discípulos desconheciam (v.5) e que coincidia com a hora de passar deste mundo ao Pai (13,1). É outra maneira de falar do mistério salvífico da sua morte ou passagem pela qual nos é preparado e garantido um lugar na morada do Pai.

Entretanto, a salvação é bem mais que a oferta de um lugar estático. Trata-se da relação dinâmica que o termo Pai, atribuído a Deus indica. Por isso, diante da pergunta de Tomé sobre o desconhecimento do caminho (v.5), Jesus não fala mais de lugar, mas expõe o relacionamento com as pessoas divinas: Ninguém vai ao Pai a não ser por mim (v.6b). Portanto, o relacionamento de fé com o filho (v.1b), na qualidade de mediador da nova Aliança (1,17b) é que garante o relacionamento filial com o Pai (1,12) a plenificar a salvação do homem. A própria revelação de Jesus como sendo o Caminho, a Verdade e a Vida (v.6), além de desvendar sua messianidade ou condição divina, manifesta ou mediação em ordem à relação filial dos crentes com o Pai. Com efeito, Ele é o caminho enquanto revela o Pai (v.9) e nos possibilita o seu acesso (vv.4-7). Ele é verdade porque está no Pai e o Pai está nele (vv.10-11). Ele é a Vida porque faz o homem partilhar da comunhão eterna com o Pai (3,35-36;5,24;6,47).

Pe. Edson de Castro Homem,
Arquidiocese do Rio de Janeiro