Cardeal Oscar Scheid: Anseios de paz

A paz, talvez, é a realidade existencial que mais almejamos. Trata-se de um desejo, acima de tudo, que buscamos no âmago de nós mesmos e que gostaríamos de ver, em realidade, em todos os âmbitos de nossos relacionamentos. É, portanto, um ideal individual e social.
Embora, rigorosamente falando, nosso país goze de paz – por não ter guerras – há conflitos, violências, desordens, assaltos e seqüestros que ferem diretamente a busca da paz. Não vivemos na paz verdadeira.

A violência como que toma conta, em muitas cidades, e até parece que os poderes públicos se tornam cada vez mais impotentes diante do recrudescimento dessas violências nas mais variadas formas. Há rivalidades, desajustes, que contribuem ainda mais para que este estado de coisas se torne mais e mais insolúvel e insuportável.

Nas metrópoles, e até mesmo em cidades de menor porte, a luta pela liderança e pelos controles de mercado geram igualmente sentimentos que colaboram para com o distanciamento das pessoas, gerando ressentimentos e inimizades. Se considerarmos, ainda, as injustiças, as desigualdades sociais acompanhadas pelo desinteresse dos organismos que deveriam zelar por sua erradicação, podemos entender por que a paz nem está no projeto de suas agendas. Interesses político-econômicos interferem para que a paz não aconteça. As inúmeras “conferências de paz” e os freqüentes acordos assinados apenas reforçam radicalismos, resistências e desconfiança. É um cenário mundial triste e chocante.

O projeto de Deus para este mundo é de prover o homem da mais completa felicidade. No Antigo Testamento, encontramos certos indícios das bênçãos de Deus, quando o homem possuía muitos bens e era dono de muitas riquezas, gozava de boa saúde, tinha uma abençoada família e vivia uma vida longa e feliz.

A aliança que Deus estabeleceu com o povo e diversas vezes renovada com o homem, garantia essa felicidade e bem-estar. Os homens conheceram momentos em que essa visão de paz desaparecia do horizonte, porque já não queriam caminhar de acordo com os critérios, estabelecidos por Deus. As mudanças da política internacional interferiam, cada vez mais, nos acontecimentos nacionais. O povo escolhido foi passando de um empobrecimento gradativo até a quase perda de sua própria identidade: sem terra, sem rei nem templo. Soube, porém, apoiar-se na esperança de que a bondade de Deus permanece eternamente e passou a vislumbrar a paz messiânica novamente no horizonte de suas vidas.

Com o advento de Cristo, o primeiro anúncio da alegria do seu nascimento foi aos pastores: os anjos cantaram “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. E essa palavra “boa vontade” parece encerrar a solução para a paz na terra. Trata-se de boa vontade, amor, apreciado por Deus, desejo, propósito. São termos que denotam a dinâmica de um agir e, conseqüentemente, um empenho pessoal que demanda o caminho da paz.

A ação de Jesus foi determinante na compreensão de sua missão no mundo: reconciliar a criação com o Criador “realizando a paz com o sangue de sua cruz” (Cl 1,20). Uma paz, portanto, que deve necessariamente passar pela cruz. A paz redentora supera as barreiras e perdoa. Une no amor crucial todas as diferenças humanas.

A serenidade em plenitude, o transbordamento dos bens messiânicos e a estabilidade física e espiritual reuniam alguns possíveis significados da expressão shalon em hebraico. Jesus amplia mais ainda o universo desses significados ao oferecer “a sua paz e não a que o mundo dᔠ(Jo 14,27), porque somente Ele pode dar a paz definitiva que é a adoção filial (“Serão chamados filhos de Deus” os promotores da paz, em Mt 5,9). O primeiro fruto da ressurreição é o dom da paz: “A paz esteja com todos vocês”.

As comunidades cristãs puderam compreender logo, que a paz do mundo não aconteceria em suas vidas, mas que o Senhor as acompanharia com sua paz. Esta é uma das palavras mais usadas, depois do monograma de Cristo, nas epígrafes dos que foram sepultados nas catacumbas de Roma. O mundo continuou a perseguir e a odiar todos aqueles que, seguindo a Jesus Cristo, abraçam sua mensagem de paz. É a desordem, fruto constante do pecado.

Não obstante o furor que desencadeia princípios imorais e anti-éticos, o cristão se defronta com dificuldades de toda ordem porque o mundo tomou uma direção diametralmente oposta aos princípios evangélicos: pregam-se o lucro, o prazer, o poder, o sucesso e a riqueza individuais e coletivas. E, para obter tudo isso, é preciso subjugar e dominar. A paz é uma proposta bem mais ampla: é antes de tudo partilha; não, do que está sobrando, mas daquilo que se possui até como necessidade.

Há que haver o respeito e apreço mútuos, procurando entender as limitações e as imperfeições dos outros e procurar ser complemento, com o apoio compreensivo, sustento nas dificuldades. Podemos chamar a isso de solidariedade fraterna na paz.

O ideal do “ser irmão” dimana da própria garantia de Deus, que, em Cristo nos deu a possibilidade dessa irmandade. Sair de si para ir ao encontro do outro significa estabelecer o elo essencial que deve reger o mundo, para que possa vingar a proposta da paz tão almejada.

Uma das definições de paz é a de Santo Agostinho, na De Civitate Dei 19, 13: “A paz de todas as coisas é a tranqüilidade da ordem”. Até autores pagãos entenderam que a tranqüila ordem da paz exigia a necessária liberdade. E é justamente essa a paz que o mundo reivindica e pouco conhece, porque a ordem mundial não conhece a tranqüilidade e a própria liberdade, sempre ameaçadas por totalitarismos evidentes, despotismos ditatoriais de organizações e até mesmo de teocracias. A paz passa necessariamente pela cruz de Cristo e acontecerá plenamente, quando se entender suas últimas palavras: “Pai, perdoai-lhes”. Sem perdão e sem justiça o mundo dificilmente conhecerá a paz. É o que o Santo Padre já nos dizia em sua mensagem de Paz, no início deste ano. Sigamos por este caminho!

Dom Eusébio Oscar Scheid
Arcebispo do Rio de Janeiro