Cardeal Hummes: Superar a miséria e a fome II

Na última semana, iniciei aqui um comentário sobre o documento da CNBB intitulado Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome. Quero agora continuar este comentário. O documento fala da miséria e da fome que milhões de brasileiros continuam a enfrentar, hoje. É um problema que se arrasta através de nossa história. Queremos, contudo, mais uma vez fazer um esforço especial para superá-lo.

No início do documento, como citei na semana passada, nós, bispos brasileiros, dizemos que “existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má distribuição dos bens e da renda” e logo acrescentamos que “o problema se agrava com a prática generalizada do desperdício”. Depois, descrevemos em poucas linhas o quadro do mundo atual no início do terceiro milênio e do século 21. Constatamos que ao entrarmos no novo milênio, muitos cristãos cultivavam a esperança de poder realizar finalmente o ideal evangélico da civilização do amor, de que nos falou o falecido Papa Paulo 6º e depois o atual e querido Papa João Paulo II‘.

Mas, lamentavelmente constatamos que o quadro do mundo atual ainda continua extremamente problemático em termos de injustiças, desigualdades, violências, guerras, terrorismos, exclusões, pobreza, miséria e fome. “As desigualdades sociais aumentam como fruto da globalização do mercado, que concentra poder e riqueza, enquanto faz diminuir os postos de trabalho na indústria e no campo”, diz o documento. E sublinha: “Flagelo atroz é a fome e a desnutrição que atinge especialmente as crianças nos primeiros anos de vida, prejudicando-as no seu desenvolvimento”. E logo em seguida diz: “Nossa geração se defronta com um processo de degradação da dignidade humana, de ofuscamento de valores morais na vivência conjugal-familiar e de corrupção da vida política e econômica. A subestimação dos parâmetros éticos aparece em experimentos científicos e genéticos, principalmente na área da biologia, que, muitas vezes, desprezam a dignidade da vida humana que deve ser respeitada desde a concepção até seu ocaso natural”.

Nós, os bispos, neste documento da CNBB, deixamos claro que a miséria e a fome não são os únicos males que atingem multidões de nosso povo. Mas: “Por serem a fome e a desnutrição a dimensão mais pungente e visível da miséria, devem ser o primeiro alvo da cooperação internacional e do mutirão que propomos. Além da fome, outras manifestações da miséria precisam ser denunciadas e enfrentadas como a precariedade na distribuição e tratamento da água, no saneamento básico, na educação, na habitação, no vestuário, no atendimento médico, até atingirmos um patamar aceitável de vida digna para todas as pessoas, visando ao atendimento de todos os seus direitos humanos indivisíveis”.

Mas, supondo que o Brasil produz suficiente alimento para todos, resta a pergunta: existe infra-estrutura suficiente para sua distribuição? O documento pensa que sim. A razão é a seguinte: “O crescimento da população é inferior ao da produtividade agrícola. Temos capacidade de produzir alimento bastante para o consumo interno e para a exportação. A combinação das redes pública e particulares de armazéns é capaz de atingir toda a população, em qualquer parte do Brasil. Apesar disto, existe gente passando fome porque a renda familiar não lhe permite comprar a comida que o mercado oferece”.

Na semana passada, já disse que a CNBB pensa num verdadeiro Mutirão Nacional para a Superação da Miséria e da Fome e propõe que se formem grupos nas nossas comunidades que ajudem neste mutirão. Tudo deve ser acompanhado de “um processo educativo no sentido de formação e informação especializadas sobre direitos e deveres individuais e sociais, como importante exercício pedagógico a ser realizado pelas igrejas e movimentos sociais”. Cito agora mais algumas ações que este mutirão deveria empreender. Além de identificar as necessidades da população, como já citei na semana passada, o documento recomenda:

– “acompanhar criticamente a composição e atuação dos Conselhos Paritários e de Direitos (de saúde, da criança e do adolescente, da educação e de assistência social) valorizando-os;
– “priorizar o acompanhamento nutricional de gestantes e crianças até 6 anos e urgir o efetivo funcionamento do Sistema de Vigilância Alimentar Nutricional;
– “garantir a gratuidade do registro de nascimento para todas as pessoas, conforme a lei”.
Há muitos outros pontos importantes deste documento, que precisamos conhecer. Por isso, vou voltar ao assunto na próxima semana! Até lá!

Dom Cláudio Cardeal Hummes
Arcebispo de São Paulo