A crise da Igreja, hoje

Vinha dizendo que a eterna crise da Igreja consiste na natural dificuldade de nos darmos conta da identidade de Jesus Cristo e de sua “práxis”. Essa caracterização da eterna crise da Igreja, hoje, toma aspectos distintos. O mundo todo, hoje, está voltado, de um lado, para a ação e, de outro lado, para a constatação alarmante da deficiência do reto agir. Em conseqüência, a ciência que domina as atenções da maioria das pessoas é a ciência do agir prático que é a ÉTICA.

Alguém da Igreja do Brasil fez a seguinte proclamação: “Hoje, o mundo necessita de um banho de ética”.

Considerando bem essa proclamação, ouso afirmar que, ainda que pese ser uma verdade legítima e incontestável, ela representa, contudo, a maior tentação para os cristãos e, concretamente, para os evangelizadores. Quero dizer que, com isso, a centralidade do Evangelho fica suposta por se confundir iniciativas e ações éticas com evangelização. É verdade que se costuma repetir sempre “à luz da fé”, “à luz do Evangelho”. Mas o contexto em que são usadas essas expressões, trai exatamente um modo de falar como se estivesse supondo essa “luz”. Na prática, com efeito, tendo afirmado “à luz da fé” e “à luz do Evangelho”, passa-se imediatamente ao nível dos deveres das ações éticas.

Dir-se-á: mas o Evangelho está cheio de prescrições, de valores, de doutrinas, de mensagens éticas: amor ao próximo, fraternidade, solidariedade, justiça, verdade, socorro aos necessitados, aos pobres, etc…

Sim, é verdade! Entretanto, se essas prescrições, mensagens, valores, etc. Não são entendidos adequadamente em relação com o âmago do Evangelho, não chegam a ser mais que prescrições éticas, capazes de transformar o cristianismo num simples movimento em prol do bom comportamento da humanidade, o que desvirtuaria essencialmente o Evangelho.

Se o Evangelho se limitasse a ser uma série de preceitos de bom comportamento, quanto maravilhosos se queira, então bastaria pregar tais preceitos para se conseguir uma evangelização ideal. Entretanto, o Evangelho é infinitamente mais do que isso. Comecemos por recordar o seguinte. Para se conseguir fraternidade, há uma condição essencial a ser preenchida: é de absoluta necessidade que aconteça filiação. Não acontecendo filiação, não acontece fraternidade. Em primeira instância não se trata de um valor, trata-se de SER. O valor flui, emerge do ser. O valor da fraternidade nasce do fato de ser filho. Depois que o prólogo de João diz que “a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12), o mesmo evangelista nos descreve, no episódio de Nicodemos, como se faz para entrar a fazer parte do Reino de Deus: “necessário vos é nascer de novo”! (Jo 3,7). Portanto, necessário vos é transformarem-se e crescerem como filhos.

Esse é o primeiro passo para se entender “à luz do Evangelho”, um passo que, na minha percepção vem sendo relegado, ou simplesmente suposto. Supô-lo significa não levá-lo em conta.

O segundo passo da “luz do Evangelho”, no meu entender, resulta do fato de, ao nos tornarmos filhos, nos tornamos “participantes da natureza divina” (2Pd 1,4), vale dizer, outro Cristo, merecedores do nome de cristão e, no dizer de beata Isabel da Trindade, “outra humanidade sua”. Noutras palavras, passamos a ser “conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rom 8,29).

A esse segundo passo segue-se um terceiro passo, este sim, já na ordem prática. Poderíamos expressá-lo com as próprias palavras de Paulo: “… até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito, a estatura da maturidade de Cristo” (Ef 4,13).

Isso significa que, em sendo outros Cristos, necessariamente e progressivamente devemos ir nos identificando com Cristo, como disse o mesmo Apóstolo: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). E isto, em força de sermos outro Cristo.

Equivale a dizer que aquele que se tornou filho pelo batismo passa a viver e repetir em si a vida de Cristo. Não somente porque, em primeira instância, suas ações são praticadas “a exemplo de Cristo”, mas porque seu ser outro Cristo passa a agir semelhantemente a Cristo. O que tenho observado é que se insiste, quase que exclusivamente, em agir “a exemplo de Cristo” e não por ser um agir que brote entitativamente do fato de sermos “conforme à imagem de seu Filho”.

O cristianismo passa dessa forma a constituir-se numa religião de atos, num movimento ético, ou moral, de bom comportamento e não, em primeiro lugar, uma religião de “re-generação” de nossa natureza, constituindo assim uma multidão de “segundogênitos”, irmãos do primogênito. A insistência é de São Paulo: “todo aquele que está em Cristo, é uma nova criatura. Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo!” (2Cor 5,17).

São duas posturas bem diferentes agir à exemplo de Cristo, ou agir porque se é outro Cristo, “renascido da água e do Espírito” (Jo 3,5), com uma tendência e com meios de crescimento até “a estatura da maturidade de Cristo”.
A evangelização se esgota em apelos éticos e morais em favor da opção, do compromisso, da solidariedade, da fraternidade, quando lhe falta o cultivo do ser cristão. A evangelização se esgota e os católicos instintivamente nos fogem da Igreja.

Em meu livro sobre o ser e o agir de Cristo, intitulado “A novidade da Novidade”, fiz uma observação a respeito do fenômeno Padre Marcelo Rossi. Disse lá que a interpretação que se dá a respeito de seu êxito não a encontro correta. Diz-se que o sucesso do Padre Marcelo depende de seu poder de comunicação. Não estou de acordo. Outros têm maior poder de comunicação. Digo que o êxito dele é fruto daquilo que comunica, até inconscientemente, subliminarmente, a respeito de sua experiência de Deus, a partir de sua conversão, coisa que não se comunica com palavras e gestos.
Há poucos dias, numa entrevista com três bispos, feita pela Canção Nova em Itaici, foi levantada a pergunta: por que há certo descompasso entre as emissoras católicas? A resposta de um dos bispos foi ótima, quando afirmou haver enfoques distintos. Estou tentando mostrar aqui em que consiste o núcleo desses distintos enfoques.
Concluo convidando o leitor a meditar sobre esse núcleo e, a seguir, observar e comparar.