Sagradas Escrituras

Bíblia, fonte de espiritualidade

É muito relevante que, em diversas passagens bíblicas, o próprio conteúdo das escrituras é tomado como fonte e direcionamento para a vida espiritual e os acontecimentos. Jesus, ao se encontrar com os discípulos de Emaús, explicou para eles as Escrituras. Isso quer dizer que, além de recordá-los do que os textos diziam, mostrou que possuíam um sentido mais profundo para aqueles que conseguiam enxergá-los espiritualmente.

O próprio Pedro, ao se dirigir ao Sinédrio, utiliza o texto Sagrado (Sl 117,22) para explicar o sentido dos acontecimentos: “a pedra que os construtores rejeitaram se tornou pedra angular” (At 4,11).

Deste modo, acontecimentos históricos, narrativas, orações e diálogos se entrelaçam compondo um grande tecido, ao mesmo tempo simbólico e real, figurativo e literal. A Palavra de Deus passa a ser “viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes” (Hb 4,12). É o Verbo Divino, é uma Pessoa. Seu objetivo? Santificação e salvação.

Como já vimos em outro artigo, o propósito das Sagradas Escrituras é mostrar o caminho da restauração do homem, isto é, sua santificação. Na quase totalidade das passagens dos Evangelhos, o sentido moral, aquele que conduz a uma mudança de vida e busca das virtudes, é bem evidente.

O homem não pode viver apegado ao dinheiro (Mt 6,24), a vida espiritual é necessária (Mt 4,4), é preciso perdoar sempre (Mt 18,21-22), o interior é muito mais importante do que o exterior (Mc 7,15), etc. Mas, em outros livros bíblicos, principalmente do Antigo Testamento, os sentidos espirituais não são tão evidentes, mesmo o sentido moral.

Bíblia, fonte de espiritualidade

Foto ilustrativa: Arquivo CN

A Bíblia é um grande compêndio da vida espiritual

Isso quer dizer que a Bíblia é um grande compêndio da vida espiritual, com orientações sobre todas as fases do desenvolvimento da espiritualidade. Claro, como já analisamos, esse conteúdo é submerso na alegoria e simbologia e só é revelado, por ação do Espírito Santo, à medida que o fiel se santifica, tornando-se um outro Cristo. Desta forma, a Bíblia alimenta a espiritualidade que, por sua vez, promove novos entendimentos da própria Palavra de Deus, tornando o processo vivo e dinâmico.

Os santos padres dos primeiros séculos entenderam como ninguém esta dinâmica e desenvolveram explicações não só para os diversos trechos das Escrituras mas, como vimos no artigo anterior , para livros inteiros da Bíblia. No exemplo citado, o Livro de Rute é a história da Alma dócil à vontade de Deus e que busca se unir com o seu senhor, o Cristo.

Isso é o que se passa com os chamados Livros Sapienciais: Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. Eles são lidos e entendidos como três fases diferentes e consecutivas da vida espiritual.

O Livro dos Provérbios e a Vida Purgativa

O início da vida espiritual é também chamado de primeira via (caminho) ou via purgativa. É o momento de se purgar (limpar, purificar) dos pecados, dos vícios, dos sentimentos e atitudes que nos afastam de Deus. Na linguagem de São Paulo, é o momento de acabar com o homem velho para que o homem novo, aquele restaurado pelo batismo em Cristo possa se desenvolver.

Que guia melhor para esse processo de conversão pessoal que o Livro dos Provérbios? Utilizando-se de sentenças diretas, com foco orientativo e moral, esse livro promove uma verdadeira correção de vida “para conhecer a sabedoria e a instrução, para compreender as palavras sensatas, para adquirir as lições do bom senso, da justiça, da equidade e da retidão; para dar aos simples o discernimento, ao adolescente a ciência e a reflexão” (Pr 1, 2-4).

Fica a sugestão: se você nunca leu o Livro dos Provérbios, leia e medite cada sentença. O início da vida espiritual não é o momento de se ocupar com sentidos espirituais profundos, é a hora de corrigir os comportamentos e adquirir as virtudes através dos ensinamentos morais. E, que fique claro, o “início” da vida espiritual não é medido cronologicamente. Se você ainda luta para se desvencilhar dos pecados mortais diariamente, vive um eterno “cai e levanta”, tentando adquirir firmeza nos Sacramentos, não importa quantas décadas você está próximo da Igreja Católica. Isso é o início da vida espiritual.

O Eclesiastes e a Vida Iluminativa

Logo após o Livro dos Provérbios, encontramos o Eclesiastes. Outro livro sapiencial ou poético que pode ser entendido como sequência espiritual do livro anterior.

O Eclesiastes está ligado à segunda fase da Vida Espiritual, também chamada de Via Iluminativa. É o momento do verdadeiro discipulado de Cristo. Se, na Via Purgativa, o principal foco é viver plenamente os mandamentos de Deus e adquirir as virtudes básicas da paciência e da temperança, a Via Iluminativa é o momento de se assumir e colocar em prática os conselhos evangélicos. Aqueles que Jesus deu aprofundando a lei e os profetas através dos quatro evangelistas e que lembramos alguns deles no quinto parágrafo deste artigo.

Mas, se formos falar da essência do Eclesiastes, poderíamos resumi-lo em “tudo [que não se refere a Deus ou a vida espiritual] é vaidade” (Ecl 1,2). Ele possui uma linguagem poética mais profunda que os Provérbios. Afinal, não é um livro para se ensinar o que fazer, mas como se posicionar perante o mundo. Não é como “fazer”, mas como “ser”.

Também por isso essa segunda parte da vida espiritual é chamada de Iluminativa. A luz precisa entrar e revelar todas as coisas… revelar os caminhos a seguir, revelar o que estava escondido e precisa ser corrigido. O Livro dos Eclesiastes é perfeito para aqueles que estão neste momento de se aprofundar no seguimento a Cristo! Vencida a luta constante e sem tréguas contra o pecado mortal, apaziguadas as paixões e tendências aos vícios, vem a grande, constante e ininterrupta permanência em Cristo (Jo 15,4). Saímos do campo da negação, entramos na afirmação. E todos sabem que construir demora muito mais que demolir.

O auge do amor no Cântico dos Cânticos

O terceiro livro poético ou sapiencial é o Cântico dos Cânticos. Seus simbolismos e a profundidade de seus sentidos espirituais escandalizaram e continuam escandalizando a todos aqueles que só conseguem fazer uma leitura superficial e literal da Bíblia.

Mas, não se trata de um livro erótico ou com sugestões indecentes. Ele é a explicação das fases que envolvem a terceira e mais alta fase da Vida Espiritual: a Via Unitiva. Limpo dos pecados e paixões, orientado sobre a verdadeira permanência em Cristo, chegou o momento de se unir em plenitude com o Cristo (Jo 17,21).

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Não se engane, não é uma leitura para principiantes. Sua densidade só pode ser comparada ao Apocalipse de São João. Mas, para vermos a profundidade dos seus sentidos espirituais, vamos citar um exemplo de uma das linguagens que causam escândalo e incompreensão: O noivo, apaixonado, chama sua amada de “minha irmã, minha noiva!” (Ct 4, 9-10).

As Sagadas Escrituras são um caminho escolhido por Deus para falar aos homens

Como vimos, essas passagens bíblicas são geralmente interpretadas com 4 respostas rápidas e absurdas: 1. é um erro de tradução; 2. o autor escreveu isso, mas não quis dizer isso; 3. naquela época era assim mesmo e irmão casava com irmã e 4. o livro foi escrito por homens e os homens às vezes erram e se confundem. Isso, para não citar os que ainda distorcem muito mais a Palavra de Deus e prontamente interpretam: a Bíblia está autorizando o casamento consanguíneo…

Lembremos que as Sagradas Escrituras falam de realidades espirituais e tratam, sempre, da santificação e salvação do homem. Para os verdadeiros intérpretes da Palavra, os que vivem sob a ação do Espírito Santo e não sob teologias e teorias “da moda”, o Cântico dos Cânticos trata da última e mais proeminente fase da vida espiritual, aquela que os místicos carmelitas chamaram de Matrimônio Espiritual.

O noivo, esposo, amante, dos Cânticos é o próprio Cristo, a quem devemos nos unir (Jo 17,21) e permanecer unidos (Jo 15,4). A amada é a alma de cada ser humano, por quem Cristo deu até a sua última gota de sangue para salvar através de sua Paixão, Morte e Ressurreição. Assim, ela é irmã pois, pela Encarnação, Cristo se tornou um de nós e nos fez filhos de Deus, como “primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8,29). Mas, também é amada, também precisa se tornar esposa como já citamos várias vezes.

Espero que, a partir de agora, faça uma experiência diferente e cada vez mais profunda com a Palavra de Deus. Afinal, Ele quer falar conosco, quer ser íntimo, quer nos apoiar e conduzir. Um dos caminhos que Ele mesmo escolheu para realizar todas essas coisas são as Sagradas Escrituras.

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