Se, nos anos 80, uma criança perguntasse sobre a expressão “caiu a ficha”, a resposta seria bem simples e objetiva: porque esperamos a pessoa entender como esperamos a ficha cair no orelhão para completar a ligação. Mas se essa mesma explicação for para uma criança nos dias hoje, não seria adequada. O mesmo acontece com a leitura do texto bíblico. As passagens relacionadas literal e diretamente com os tempos atuais, geralmente, levarão a conclusões erradas. A Bíblia Sagrada representa uma leitura para o conhecimento da relação do homem com Deus e com o mundo. Por isso, não pode ser interpretada de forma superficial.
Vamos responder para a criança que nos perguntou, hoje, sobre a expressão “caiu a ficha”. Na primeira explicação, a criança já sabia o que era um orelhão, o que era uma ficha e como esses itens se relacionam com uma ligação. Mas não a criança de hoje. Daí a necessidade de explicar o contexto: há alguns anos, quando não havia celulares, existiam telefones públicos, que ficavam em uma cabine de proteção contra o sol e a chuva, e tinham o apelido de orelhão, porque lembravam uma orelha bem grande. Para fazer uma ligação era preciso ter uma ficha, que se parecia muito com uma moeda. Essa ficha era colocada no telefone e a ligação só poderia ser iniciada quando se ouvia o barulho da ficha caindo dentro do aparelho. Por isso se diz “caiu a ficha” quando uma pessoa entende algo com atraso, como esperávamos a ficha cair no orelhão para completar a ligação.
Contexto histórico e passagens bíblicas
Agora, imagine que você esteja andando por uma praça pública nos dias hoje e se depara com um grupo de pessoas que desejam apedrejar uma mulher que traiu o marido. Esse grupo o questiona se devem apedrejá-la, e você prefere se manter em silêncio. Novamente, eles fazem o questionamento e você, com toda calma e tranquilidade diz: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” (Jo 8, 7). Não parece a reação adequada para os dias de hoje. A simples proposta de imaginar um grupo de pessoas querendo apedrejar alguém já soa como extremo absurdo. Mas por que Jesus agiu daquela forma?
No contexto histórico da época, o apedrejamento era uma condenação aplicada a vários crimes, dentre eles, o adultério e a blasfêmia. Inclusive, Jesus foi ameaçado de apedrejamento (Jo 10, 33). Esses crimes eram considerados crimes contra a sociedade, por isso a própria sociedade, através desse grupo de pessoas que a representava, aplicava a sanção ao criminoso, atirando-lhe as pedras até a morte. Parece-nos uma condenação e punição muito extremas, mas o que pensarão as pessoas daqui a dois mil anos sobre os presídios de hoje em dia? Aliás, se o fato de o adultério ser crime também o chocou, não precisamos voltar muito no tempo, pois o artigo 240 do Código Penal Brasileiro, que previa o crime de adultério, só foi oficialmente revogado no ano de 2005. Até então a lei previa para o adultério a pena de detenção de quinze dias a seis meses.
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Saibamos, portanto, identificar nos textos bíblicos o contexto histórico para que seja possível compreender a verdade das Sagradas Escrituras. Com o pensamento atual, parece mais do que óbvio a defesa daquela mulher adúltera, mas o que Jesus fez foi oferecer perdão a uma criminosa presa em flagrante e condenada a uma pena aceita pela sociedade. Não se pode analisar tal passagem como o simples perdão pela infidelidade quando, na verdade, o texto retrata a defesa de um criminoso perante uma sociedade agressiva, ato de verdadeira coragem e misericórdia. A forma como Jesus agiu elevou a interpretação da lei a uma questão moral, atingindo a consciência dos que condenavam. Mesmo para a época, não se violou a lei, pois houve a correção da pecadora: “Vai, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8, 11), ao mesmo tempo que não se perdeu a missão de conversão (Lc 5, 32).
Fé e sabedoria
Para finalizar, cito a mensagem do Santo Papa João Paulo II ao Pontifício Comitê das Ciências Históricas: “De fato, no estudo da história, não se pode automaticamente aplicar ao passado critérios e valores adquiridos somente depois de um processo secular. Porém, é importante esforçar-se acima de tudo por remontar ao contexto socio-cultural da época, para compreender o que aconteceu a partir das motivações, das circunstâncias e dos aspectos do período em exame. Os acontecimentos históricos são o resultado de interligações complexas entre a liberdade humana e os condicionamentos pessoais e estruturais. Devemos ter presente tudo isso quando pretendemos ‘purificar a memória’”.
Que possamos realizar a leitura das Sagradas Escrituras com fé e sabedoria, para que os conhecimentos históricos e culturais que temos daquela época nos permitam compreender o verdadeiro significado das passagens, alimentando nossa fé, guiando nossos caminhos e nos aproximando da santidade. Que assim seja!
Referências:
BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB, 18 ed. Editora Canção Nova.
JOÃO PAULO II. Mensagem ao Pontifício Comité das Ciências Históricas por ocasião do Congresso pelo Centenário da Morte do Papa Leão XIII. Vaticano, 28 out. 2003.