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Exploração sexual e tráfico de mulheres e crianças

Denunciar é amar; cuidar é evangelizar

No ano santo do Jubileu da Esperança, a realidade é iluminada pela certeza paulina de que “a esperança não decepciona” (Rm 5,5). Essa convicção cristã não é um ideal abstrato, mas uma força profética que impulsiona a dar testemunho e a viver a Páscoa no cotidiano, como vida nova que vence a morte e todas as formas de expressão.

Exploração sexual e tráfico de mulheres e criança Olho de uma criança visto por entre frestas de madeira, transmitindo sensação de vulnerabilidade e aprisionamento

Foto ilustrativa: mmg1design by Getty Images

Diante disso, é nesse horizonte pascal que se insere a necessidade de pensar e agir sobre o Dia Internacional contra a Exploração sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças. A Teologia Moral, ao interpretar os sinais dos tempos, revela que a esperança não se limita ao consolo espiritual ou a um alívio de consciência, mas se concretiza em denúncia profética e compromisso pastoral em defesa da dignidade humana.

Viver o tempo do Jubileu da Esperança é buscar restaurar a vontade de Deus para todos: “… que todos tenham vida e a tenha em abundância” (Jo 10,10). Dessa forma, combater o tráfico humano não é a penas uma exigência social e jurídica, mas uma expressão viva da fé crista que anuncia um futuro de liberdade, cuidado e justiça. Trata-se não apenas de reagir ao mal já causado a tantas vidas, mas de prevenir para que tais atrocidades não voltem a acontecer.

Uma afronta direta à dignidade humana querida por Deus

A exploração sexual e o tráfico humano configuram hoje uma das mais graves violações contra os Direitos Humanos fundamentais, com estatísticas globais alarmantes que apontam milhões de vítimas todos os anos. Esse número é mais assustador em regiões marcadas por desigualdades estruturais que favorecem tais práticas ilícitas.

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Os mais vulneráveis são as principais vítimas. À luz da Fé, a Igreja denuncia essa realidade como uma verdadeira escravidão moderna, retomando o magistério profético que reconhece nesse crime uma afronta direta à dignidade humana querida por Deus. Do ponto de vista da Teologia Moral, não se trata apenas de atos individuais, mas de um pecado estrutural que supera a vontade subjetiva.

Trata-se de um mal social enraizado em um sistema econômico, cultural e político que instrumentalizam a vida humana. Diante disso, eis a necessidade de um discernimento ético contínuo e uma resposta comunitária e política capaz de unir denúncia, cuidado às vítimas e transformação das estruturas que sustentam essa chaga social.

Fundamentação bíblica

No Antigo Testamento, a violação da dignidade humana aparece como ruptura à Aliança (Ex 22,21-24; Is 58). Trata-se de uma idolatria que compromete o todo, não apenas a pessoa, mas a comunidade e a Criação. É possível perceber que todas as ações de Deus defendem a vida e buscam a libertação da pessoa de toda e qualquer opressão.

A opção de Deus é paradigmática: a vida. No Novo Testamento, Jesus, o Filho de Deus, é defensor dos vulneráveis e cumpre com a promessa de que Deus não apaga a chama que fumega, nem quebra o caniço rachado. Quando colocado à prova, amplia a misericórdia de Deus e redime tudo e todos.

Ele começa dos que ocupam as periferias existenciais: a mulher com fama de adúltera (Jo 8,1-11), o órfão, a viúva, o cego, o surdo, o cocho e as crianças (Mt 19, 14). E ainda deixa recomendações objetivas para com os inocentes, os famintos e os que têm sede, os injustiçados, os tristes, os pacíficos, os encarcerados, os enfermos e os perseguidos.

Nesse sentido, o Cristo se faz defensor da liberdade contra qualquer forma de coisificação da pessoa. E quando sobe aos céus, deixa o Outro defensor, o Paráclito, para que todos tenham vida livre e que ninguém fique desamparado.

Uma releitura à luz da Doutrina Social da Igreja

Dessa forma, a partir de uma dimensão antropológica e moral do problema, cabe afirmar que a mulher e a criança são sujeitos de direito, e nunca deveriam ser considerados objetos de consumo. A exploração sexual e o tráfico são uma violação gravíssima contra a liberdade, a corporeidade e a integridade moral.

Fere não apenas a vítima de tal crime, mas a sociedade como um todo. Diante disso, ambos os crimes reduzem o corpo à mercadoria, negando sua dignidade sagrada. A Teologia Moral denuncia essa lógica mercadológica e utilitarista, e reafirma que o corpo é lugar de comunhão, de alteridade e manifestação do amor de Deus e, jamais um objeto.

São João Paulo II e Bento XVI com a tradição da Igreja

A Conferência Latino-americana e Caribenha no Documento de Puebla n. 31, afirma o rosto concreto de Cristo que sofre. Essas são feições que interpelam a Igreja a trabalhar para extinguir o tráfico humano e a exploração sexual de mulheres e crianças. Essa situação é uma violência institucionalizada que procede de uma estrutura de pecado (Puebla, n. 452).

São João Paulo II e Bento XVI, em sintonia com a tradição da Igreja, reafirmaram a dignidade integral da pessoa humana e denunciaram que tais atrocidades não são meros desvios subjetivos, mas expressão do pecado social, isto é, de um sistema de injustiça institucionalizada.

O saudoso Papa Francisco, na mesma linha, em documentos como Evangelli Gaudium, Laudato Si’ e Fratelli tutti aprofunda a denúncia ao reconhecer que os crimes em questão, além de serem crimes contra humanidade e uma negação frontal contra a fraternidade evangélica, são um exemplo da crise socioecológica e comprometem o futuro da humanidade.

Essa crise, como desdobramento do pecado ecológico, ferida da nossa realidade, requer um discernimento moral capaz de retornar à ética da dignidade da alteridade. A consciência moral diante da exploração sexual e do tráfico urge, não apenas por uma responsabilidade pessoal, mas, acima de tudo, comunitária.

Um resgate do pensamento de Santo Alfonso que inspira o passo para o bem possível (Evangelli Gaudium n. 44; Amoris Laetitia n. 308), ou seja, passos concretos na luta contra a coisificação da vida.

Trata-se de um assumir essa problemática como desafio a ser superado. Isso se dá pela perspectiva da alteridade: reconhecer no outro, no empobrecido, o rosto de Cristo sofredor.

A rede Talitha Kum

No que tange às respostas eclesiais e sociais, o Magistério recente tem iniciativas como a rede Talitha Kum; já as conferências episcopais, as congregações religiosas, as redes internacionais católicas unem forças na prevenção, denúncia e reinserção das vítimas. São iniciativas que expressam a dimensão profética da Igreja, uma vez que traduzem a fé e a liturgia em cuidado, esperança e justiça.

No âmbito civil, faz-se necessário cada vez mais políticas públicas e cooperação internacional de acolhida e hospitalidade que promovam o diálogo entre fé, direito e sociedade.

A esperança cristã: um chamado a uma espiritualidade de compromisso

Na memória viva das vítimas, compreende-se que a exploração sexual e o tráfico de mulheres e crianças representam uma negação radical da Teologia da Criação, do discernimento, da dignidade humana, uma vez que transformam aquilo que Deus criou como dom em mercadoria.

Diante dessa chaga, impõe-se a urgência de uma ética da acolhida, do cuidado e da hospitalidade, capaz de educar para a paz, a solidariedade e a justiça.

Um discernimento pessoal e político que, efetivamente, reconstrua laços sociais. Mais do que uma denúncia, este é um chamado a uma espiritualidade de compromisso, que destaca a memória das vítimas e, ao mesmo tempo, seja uma inspiração a gestos concretos de transformação estrutural, para que a esperança cristã, neste Ano Santo, se torne presença libertadora no coração da história.

Completar com a nossa carne as chagas do Corpo de Cristo, abertas pela injustiça. Isso significa reconhecer que o sofrimento das vítimas do tráfico e da exploração não é distante de nós, mas toca nossa humanidade e interpela nossa fé.

Padre Luiz Albertus Sleutjes
Doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Università Lateranense/Accademia Alfonsiana, Roma-IT, escritor e psicanalista. Atua como membro do corpo docente da Pontifícia Universidade de Campinas (PUC Campinas).
e-mail: sleutjesla@yahoo.com.br