Todos nós guardamos lembranças de ensinamentos que recebemos dos nossos pais. Pode ser uma cena que costumava ocorrer na mesa, na hora do almoço, ou uma situação específica na qual o pai ou a mãe sempre repetiam um determinado bordão, transmitindo uma verdade moral. Dias atrás eu estava lendo sobre o caminho da perfeição cristã e lembrei-me da relutância do meu pai em pintar a frente da nossa casa. Explico.
Venho de uma família simples, da zona rural de um pequeno município da Bahia. Meu pai sempre foi agricultor, minha mãe, professora. Eu e meus irmãos crescemos trabalhando na roça, ajudando meu pai. Além de agricultor, até hoje ele é criador ora de galinhas, ora de porcos, ora de carneiros. É também pedreiro, eletricista, encanador, pintor, mecânico. Não há serviço que ele não saiba fazer. Por conta disso, as pequenas reformas na nossa quase sempre são feitas por ele mesmo. Só que meu pai sempre teve um olhar pragmático: se era necessário trocar uma fiação elétrica, ele furava a parede, substituía a fiação, colocava o reboco e pronto, nem pensava em pintar a parede. Minha mãe às vezes fazia um apelo para ele “dar uma ajeitada nas feições da casa”, que com o passar do tempo ia ficando mais remendada que os pneus da nossa velha bicicleta. Meu pai dava sempre uma resposta padrão a ela: “No verão”. Esse verão, você deve imaginar, nunca chegava. Após essa resposta, contudo, é que costumava vir o ensinamento moral de meu pai. Ele falava de pessoas que construíam ou faziam uma reforma e caprichavam na fachada de suas casas. Quem passava na estrada olhava para aquela beleza e imaginava muito luxo no interior. Quantas vezes, dizia meu pai, ele havia entrado em algumas daquelas casas e se deparava com um chão sem piso, com paredes sem reboco e mesmo com uma mesa sem carne. Aquelas pessoas preferiam pisar no barro e passar fome apenas para terem uma frente de casa opulenta, que causasse inveja nos vizinhos.
O sentido de valorizar o nosso interior
Eu sou diferente, dizia meu pai. Se eu não tiver cimento suficiente, prefiro botar um piso no interior da casa, onde nós pisamos, a arrumar a fachada, que só serve para o povo ver. Não faço a menor questão de ter frente de casa bonita. “Mais importante é termos feijão, farinha e carne todo dia na mesa. O resto é luxo”. Claro que minha mãe falava que graças a Deus nós já tínhamos a comida dentro de casa e até sobrava um dinheirinho para pintar a frente da casa, que era a única coisa que ela queria. Meu pai dizia que no verão resolveria aquilo e assim a conversa rendia. Mas não é esse o ponto que quero ressaltar hoje. O que meu pai dizia, em outras palavras, é que precisamos arrumar primeiro o interior, para só depois nos preocuparmos com o exterior. E mais do que organizar, muitas vezes nós sequer estamos priorizando alimentar esse interior, o que é ainda mais grave.
Lembrei dessa história da minha infância enquanto lia Adolphe Tanquerey, um padre francês do início do século XX, autor de um tesouro da nossa igreja, o Compêndio de Teologia Ascética e Mística. Ele nos ensina, em determinado momento, que “não há meio mais eficaz, mais prático, mais ao alcance de todos, para se santificar uma alma, do que sobrenaturalizar cada uma das ações; este meio basta por si só para nos elevar em pouco tempo a um alto grau de santidade”. Ele reforça que precisamos santificar todas as nossas ações. Não apenas aquelas grandiosas ou tidas como piedosas, mas todas. Todas, como gosta de reforçar o meu pai fundador, Monsenhor Jonas Abib, significa todas.
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Se vou ler um livro, se vou rezar uma Ave-Maria, se vou dormir ou ter um momento de lazer, preciso sobrenaturalizar essas ações, colocando Cristo como razão de tudo, como alvo de toda glória, como sentido e fim último. Preciso esvaziar essas ações de toda intenção natural ou má, nos ensina o padre Tanquerey. Se vou ajudar alguém, não é porque sou bom e caridoso ou porque gosto daquela pessoa, mas por amor a Cristo. Se resolvo aceitar um elogio, que não seja para a minha glória, para o meu engrandecimento. Aceitarei somente se aquele elogio aumentar a glória de Cristo, evidenciar o que Ele fez em mim, na minha vida.
Como está o seu interior?
Sobrenaturalizar cada ato é um desafio tremendo. Não é nada fácil porque tem a ver com as intenções do nosso coração. Na nossa caminhada, podemos cair facilmente em diversas armadilhas, como a do elogio. Eu posso ser uma pessoa que tem uma vida correta, não comete nenhum “pecado público”. Pelo contrário, sou até visto como bastante “bonzinho”. Prego o evangelho, participo da missa diariamente, tenho minhas devoções. As pessoas olham-me e julgam contemplar um santo. Admiram-se com a fachada da minha casa. Só que se meu pai às vezes conseguia entrar naquelas casas com fachadas bonitas e ver como era de fato o interior de cada uma delas, na casa do meu coração só o Pai que está no céu pode entrar. As minhas intenções só são conhecidas por mim e por Deus.
A pergunta que me fiz quando li isso foi: quantos dos meus atos diários são realmente sobrenaturalizados, guiados por um espírito de conversão? Porque a resposta a essa pergunta revela que intenções guiam esses mesmos atos. Há quem se iluda com a ideia de que a conversão é um momento marcante na vida de uma pessoa, algo que pode ter acontecido há dez, vinte, trinta anos. Nada mais distante da verdade. Um navio que parte de um continente para outro não pode simplesmente estabelecer a sua rota e esquecer-se do leme: a maré, os ventos e as correntes tendem a fazer o navio desviar do seu caminho o tempo inteiro, nos ensina o padre francês. O mesmo acontece com a nossa vontade. A decisão por Deus não é um episódio do passado, do qual devo me lembrar com nostalgia como um momento mágico. Ela se repete várias vezes ao dia. Acontece agora, imediatamente antes da minha próxima ação. Se quero crescer na minha vida de santidade, em todos os momentos devo rever as minhas intenções e motivações à luz de Cristo e sobrenaturalizar minhas ações, para poder praticá-las com mais amor. Diante disso, tenhamos a clareza de que é sempre tempo de retomar. Sou convidado a parar de contemplar a fachada da minha casa, dar um passo corajoso e entrar, ver como ela está por dentro. Está tudo em ordem? Tenho alimentado meu interior ou preocupei-me por muito tempo com a aparência, com atos exteriores? À medida que o interior da casa for sendo arrumado, isto é, as intenções do nosso coração forem sendo purificadas, fará sentido que o exterior reflita essa realidade. A fachada da casa naturalmente começará a refletir a beleza e o brilho próprios de um lugar onde Deus habita.
Então perceberemos que o nosso verão chegou.