Conhecer a si mesmo é a arte mais excelente de todas, ensina São Bernardo. Há, contudo, uma enorme diferença entre a concepção do autoconhecimento que o mundo vende e aquela que o próprio Jesus nos ensina. O mundo ensina que é necessário se conhecer para “vencer na vida”, para mostrar que tem valor, para não ser mais pisado nem humilhado pelos outros, para se tornar o “macho alfa”, o líder da matilha, superar “crenças limitantes” e conquistar tudo o que sempre sonhou (riqueza, poder, prosperidade). O autoconhecimento, nos ensina o mesmo São Bernardo de Claraval, é necessário para conhecermos a Deus, para nos aproximarmos Dele, seja pela consciência das nossas misérias, que desprezamos e contra as quais lutamos, seja pelo reconhecimento de que quaisquer dons e virtudes que possuamos provêm unicamente de Deus, o Sumo Bem.
O verdadeiro autoconhecimento nos leva à consciência do que diz o livro do Apocalipse: “Dizes que és rico, tens abundância e nada te falta; e não te dás conta de que és desgraçado, miserável e nu” (Ap 3, 17). Sou um miserável, um desgraçado, estou nu, e sem Cristo nada posso fazer. Ou, nas palavras de Santa Teresa d’Ávila, sei que “o princípio de nenhuma coisa boa que façamos procede de nós, mas desta fonte onde está plantada esta árvore de nossas almas e deste sol que dá calor a nossas obras”. Ou ainda, para tomar emprestada a expressão tão precisa de Santo Agostinho, “o homem é um mendigo de Deus”.
Quem quer conquistar o autoconhecimento precisa fazer a experiência da Misericórdia de Deus
Precisamos compreender, contudo, que reconhecer-se miserável diante de Deus não significa dizer que não temos valor. Autoconhecimento não é simplesmente insultar-se, depreciar-se, ofender a si mesmo. É tirar a glória e os méritos que atribuo a mim e entregar a Deus, que de fato merece toda glória e todo mérito. Quanto mais reconheço a minha indignidade, a minha incapacidade de fazer o bem, a minha falta de mérito diante de Deus, mais reconheço a sua infinita misericórdia, a sua bondade e a grandeza Deus, o seu amor gratuito, incomparável por mim, que me acolhe e me salva, apesar das minhas fraquezas. E esse conhecimento de mim mesmo não me desanima, não me tira a alegria nem a esperança, justamente porque com ele vem a experiência da Misericórdia Divina. Se me reconheço pecador diante de Deus, experimento o que o padre Adolphe Tanquerey nos diz: “Ensina a fé que Deus é misericórdia e que por esse motivo se inclina com tanto mais amor para nós quanto mais reconhecemos as nossas misérias: porque a miséria atrai a misericórdia”.
Conhecer a si mesmo precisa andar passo a passo com a experiência do Deus misericordioso, ou os resultados serão terríveis. Basta olharmos para Judas Iscariotes, que se arrependeu do seu pecado, mas não confiou na misericórdia de Deus. Desesperado, tirou a própria vida. Um exemplo bem interessante disso nós colhemos na literatura, num dos mais fascinantes livros já escritos: Crime e Castigo, do escritor russo Dostoiévski. O livro narra a história de Raskólnikov, um jovem estudante russo que mata uma usurária e vê-se lidando com a culpa e o arrependimento. Em determinado momento da história, ele se encontra com um homem completamente bêbado num bar. O nome desse senhor é Marmieládov, e ele conta sua história para Raskólnikov: ele é um funcionário público que se casou com uma belíssima e digníssima dama, com quem teve muitos filhos. Por conta do seu problema com a bebida, eles hoje vivem na pobreza mais humilhante, a ponto de não terem o que comer ou vestir. Sua esposa é bastante doente e, diante da miséria, Sônia, sua filha adolescente, viu-se obrigada a se prostituir, para trazer algum dinheiro e não ver seus irmãos morrerem de fome. Após uma intervenção de um conhecido importante, Marmieládov recupera seu emprego e faz-se festa em sua casa. Ele vai trabalhar alguns dias, instala-se um clima de esperança de que dias melhores virão. Basta, contudo, que ele receba o primeiro pagamento, para não voltar para casa. Ele vai direto para um bar e gasta todo o dinheiro com bebida. Envergonhado do seu ato terrível, que condenou sua filha a voltar à prostituição e pode ter determinado a morte de sua família, ele não tem coragem de voltar para casa e passa vários dias rodando de bar em bar, implorando que alguém lhe pague uma bebida.
Na longa conversa de bêbado de Marmieládov não falta a consciência da própria culpa. Ele não para de se acusar o tempo todo, de dizer como é vil, desprezível, repugnante. Sabe que a situação em que se encontra a sua família é responsabilidade sua: ele praticamente condenou a sua esposa à morte por tuberculose, em virtude das privações, do frio, da falta de comida, da falta de roupas, dos inúmeros sacrifícios que ela teve que fazer para manter os próprios filhos minimamente alimentados; ele condenou a própria filha, um anjo de pureza, como ele mesmo diz, à prostituição, a uma vida de sofrimento e humilhação. Ele faz questão de expor todos os seus atos abjetos aos clientes do bar. Quando alguém o insulta, ele diz que aquilo ainda é pouco, que ele é muito pior do que eles pensam. Diz também que merece todo o desprezo da esposa, até as surras que imagina que receberá, os xingamentos…
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A culpa
Falta, contudo, algo a Marmieládov. De nada adianta a consciência da própria culpa se não há confiança na Misericórdia de Deus. Ele é um homem derrotado, vencido. Não crê que possa haver mais saída. O mal que ele causou é grande demais, pensa ele, para que possa ser remediado. Perceba como a história de Marmieládov parece com a de Judas Iscariotes. Judas se arrependeu de ter traído Jesus? Sem dúvida. Arrependeu-se amargamente. Mas faltou crer na Misericórdia de Deus. O peso da culpa de ter feito perecer um inocente – o inocente, o santo, o seu Senhor – cegou Judas e ele não conseguiu se lembrar de Jesus perdoando a adúltera, dizendo que Ele também não a condenaria, nem perdoando Zaqueu, nem Mateus, nem tantos outros… Conhecer a si mesmo é uma arte valiosa, mas precisa andar ao lado do conhecimento do Senhor. Por isso, quando Santo Agostinho vai falar de uma oração perfeita em seus Solilóquios, diz: “Deus sempre o mesmo: que eu me conheça a mim mesmo; que eu te conheça. Pronto: já rezei”.
São Bernardo diz com toda razão que “o homem começa a ser justo exatamente quando se acusa a si mesmo”. Acusemo-nos diante de Deus. Reconheçamos e exponhamos ao Senhor da vida as nossas misérias e limitações. Mas não esqueçamos que onde abundou o pecado, superabundou a graça. Não há pecado, falha, crime que não possa ser alcançado pela Misericórdia de Deus. Se você se consome por um erro que cometeu e pelo qual não consegue se perdoar, lembre-se do pedido de Jesus ao Pai, na cruz: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”.
Faça a experiência com o Pai Misericordioso, que acolhe seu filho que volta, arrependido, põe o anel em seu dedo, calça-lhe os pés e faz festa, porque ele estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.