Muitos afirmam a inexistência de Deus e tentam comprová-la. No entanto, que benefício a inexistência d’Ele nos traria?
Na minha qualidade de crente, quero fazer uma proposta aos laicistas. Na época do iluminismo, tentou-se entender e definir as normas morais essenciais, dizendo-se que elas seriam válidas etsi Deus non daretur, ou seja, mesmo no caso de Deus não existir.
Na contraposição das confissões religiosas e na iminente crise da imagem de Deus, tentou-se manter os valores essenciais da moral por cima das contradições e buscar uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das diferentes filosofias e confissões. Desse modo, pretendia-se assegurar os fundamentos da convivência e, de uma forma mais geral, os fundamentos da humanidade. Naquele momento da história, pareceu que isso era possível, porque as grandes convicções de fundo, surgidas no Cristianismo em grande parte, resistiam e pareciam inegáveis, mas agora já não é assim.
A busca de tal certeza tranquilizadora, que pudesse permanecer incontestada, independentemente de todas as diferenças, falhou. Nem sequer o esforço realmente grandioso de Kant foi capaz de criar a necessária certeza compartilhada por todos. Kant havia negado que Deus pudesse ser conhecido no âmbito da razão pura, mas, ao mesmo tempo, colocou o Senhor, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, para ele não era possível a ação moral.
A situação atual do mundo não nos leva, talvez, a pensar de novo que ele possa ter razão? Digo-o com outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de plasmar as coisas humanas, menosprezando Deus completamente, leva-nos, cada vez mais ao abismo, ao isolamento total do homem. Deveríamos, então, voltar ao axioma dos iluministas e dizer: mesmo quem não consiga encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria buscar viver e dirigir sua vida Veluti si Deus daretur, ou seja, como se Deus existisse. Este é o conselho que dava Pascal a seus amigos não crentes; é o conselho que queríamos também dar a nossos amigos que não creem. Desse modo, ninguém fica limitado em sua liberdade, mas todas as nossas preocupações encontram um sustentáculo e um critério, cuja necessidade é urgente.
O que mais necessitamos nesse momento da história são homens que, por meio de uma fé iluminada e vivida, façam com que Deus seja crível neste mundo. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus, mas viviam de costas para Ele, obscureceu a imagem do Senhor e abriu a porta à incredulidade. Necessitamos de homens que tenham o olhar fixo no Senhor, aprendendo d’Ele a verdadeira humanidade. Necessitamos de homens, cujo intelecto seja iluminado pela Luz de Cristo e a quem Ele abra o coração, de maneira que seu intelecto possa falar ao intelecto dos demais e seu coração possa abrir o coração dos demais.
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Somente por meio de homens que tenham sido tocados por Deus é que Ele pode retornar para perto dos homens. Necessitamos de pessoas como Bento de Nursia, que, em um tempo de dissipação e decadência, penetrou na solidão mais profunda e, depois de todas as purificações que deveria padecer, conseguiu se erguer até a luz, regressar e fundar Monte Cassino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, reuniu as forças das quais se formou um mundo novo.
Desse modo, como Abraão, Bento tornou-se pai de muitos povos. As recomendações a seus monges, apresentadas no fim de sua “regra”, são indicações que nos mostram o caminho que conduz ao alto, além da crise e das ruínas.
“Assim como há um mau zelo de amargura que separa de Deus e leva ao inferno, há também um zelo bom que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Pratiquem, pois, os monges este zelo com a mais ardente caridade, isto é, adiantando-se para honrar uns aos outros; tolerem com suma paciência suas debilidades, tanto corporais como morais (…); pratiquem a caridade fraterna castamente; temam a Deus com amor; (…) e absolutamente nada anteponham a Cristo, que nos poderá conduzir todos juntos à vida eterna” (capítulo 72).
(*) Discurso de Subiaco, proferido pelo Cardeal Ratzinger, em 1 de abril de 2005, no Mosteiro de Santa Escolástica, em Subiaco.