O clamor antigo pelo bem comum na história do Brasil
Já nos idos de 1627, o frei franciscano Vicente do Salvador, pelo que indica a historiografia, o primeiro historiador brasileiro, escreveu um opúsculo intitulado Historia do Brazil [sic]. O nome do país nem ao menos se escrevia com “s”, e o frade já apontava, na referida obra, o seguinte: “Nenhum homem, nesta terra, é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular (sic)” (Salvador, 2007, p. 21).
Superando a subjetividade: em busca de um referencial objetivo
A busca do perfil tanto de um bom ou mau governante, quanto de um bom ou mau governado, pode trazer a ideia de que se trata somente de sua subjetividade, como por exemplo, seu histórico de vida pessoal e profissional. Sem dúvida, esse aspecto tem sua importância, porém, a questão exige algo mais além disso, notadamente, ao se tratar de consciência e responsabilidade cristã na democracia. Ela requer elementos de objetividade. Deve haver um esforço de identificação dos reais compromissos do sujeito, ao menos, com três referenciais indeclináveis, quais sejam: o bom governo da cidade, horizonte do bem comum e a necessidade da justiça para a vida boa em coletividade.
A natureza social do homem e a necessidade da justiça segundo Tomás de Aquino
Tomás de Aquino concorda com Aristóteles que o homem não é apenas animal, mas animal racional, com uma excelência a ser alcançada através do viver e conviver virtuoso. Os homens se juntam uns com os outros, a fim de que possam atingir uma vida boa na coletividade, o que não pode ser conquistado de maneira individualista. A associação humana mostra que os homens são animais sociais e, nesse aspecto, à sua maneira, Tomás de Aquino complementa Aristóteles.
O escolástico reconhece que o homem necessita da coletividade. Contudo, essa mesma coletividade, constituída de individualidades, que visam aos seus próprios bens, corre sério risco de se desmantelar se não for regida por alguma força agregadora, capaz de bem governá-la, orientando-a para o bem comum e para a justiça social.
O imperativo do bem comum: justiça, direito e lei como pilares de uma democracia cristã
É fundamental, pois, identificar o comum-social, porque ele tem a força unitiva das partes, enquanto o particular-individual é movido pela divisão do todo.
A cidade só se torna, pois, uma verdadeira comunidade política se governada com base no bem comum e na justiça. Tomás de Aquino não hesitou em dizer que torna injusto um governo tratar do bem particular do governante, menosprezando o bem comum da coletividade. Quanto mais afastado do bem comum, tanto mais injusto é o regime político (Aquino, 2013). Governo justo é absolutamente necessário, evitando malfeitos à coletividade.
As virtudes morais e cívicas: guias para governantes e governados
Aos governantes e aos governados são necessárias, no mínimo, duas virtudes: as virtudes morais, que conduzem à vida honesta, e as virtudes cívicas, que conduzem ao bem da cidade. Entre as virtudes morais, notadamente, a justiça tem especial destaque no pensamento tomista. Ela está catalogada entre as chamadas “virtudes cardeais”, considerando que “[…] estabelece a convivência social verdadeiramente humana.” (Josaphat, 2012, p. 580).
Justiça geral e justiça particular: a busca por equidade nas relações sociais
Na esteira de Aristóteles, Tomás de Aquino também apresenta uma classificação da justiça em geral e particular. Ele mostra a estreita conexão do bem comum com a justiça como virtude geral: “[…] é manifesto que todos que fazem parte de uma comunidade, estão para esta como a parte para o todo […]. E, a esta luz, os atos de todas as virtudes podem pertencer à justiça, enquanto esta ordena o homem para o bem comum. (Aquino, 2012, p.63). Essa definição da justiça como virtude geral se encontra bem próxima daquilo que, nos tempos atuais, se costuma chamar de justiça social (Finnis, 2007, p. 193-194).
A justiça particular comporta uma bipartição em justiça comutativa e justiça distributiva (Aquino, 2012). Em ambas, de fato, o que está em questão é o bem particular de pessoas, mas, vale ressaltar, sempre dentro das diretrizes da comunidade política (Lopes, 2000, p. 161). A dialética todo-parte é permanente no tocante à justiça, pois as relações humanas, na ótica tomista, não se caracterizam por mera justaposição, haja vista que a coletividade (o todo) não é apenas uma somatória de individualidades (as partes), mas um “corpo” orgânico e complexo.
A justiça particular toma duas direções: uma delas envolve as relações das partes entre si (justiça comutativa); a outra, as relações entre o todo e as partes (justiça distributiva). De qualquer modo, se elas ocorrem na comunidade política, também acabam contribuindo, com menor (justiça comutativa) ou maior (justiça distributiva) intensidade, respectivamente, para o bem comum, do qual governantes e governados não devem se afastar, de modo que fique assegurada a paz social.
A interligação entre justiça, direito e lei na comunidade política
Na comunidade política, há estreita relação entre justiça e direito, já que se entende o direito como objeto de justiça (Aquino, 2012). Se o direito natural traz o bem comum como algo necessário, o direito positivo não pode ser antagônico a essa orientação. E a lei é tida como “[…]ordem ou prescrição da razão para o bem comum, promulgada por quem tem a seu cargo o cuidado da comunidade.” (Aquino, 2010, p. 525).
O bem da pátria como bem maior: lições de Dante Alighieri
Em sua obra Monarquia, Dante Alighieri já assinalava que se, de fato, a parte deve expor-se para a salvação do todo, uma vez que o homem é parte da cidade, como é demonstrado por Aristóteles, na obra Política, então, o homem deve expor-se pela pátria, enquanto bem menor em favor de um bem maior. Por isso, para ele, o mencionado filósofo, na Ética a Nicômaco, lançou o seguinte ensinamento memorável: ‘Se é amável o bem de um homem em particular, ainda mais belo e divino é aquele relativo a um povo e à cidade’ (Alighieri, 2006, p. 77).
Os males que corroem a democracia e o alerta de Padre Antônio Vieira
O autoritarismo no exercício do poder público, a cultura senhorial, o patrimonialismo, o clientelismo, a privatização do público, o favoritismo que tanto se distanciam do bem comum, da justiça, do direito e da lei são sinais de maus governantes e maus governados.
Não é demais, então, relembrar o Sermão do Bom Ladrão, de Padre Antônio Vieira, quando já ensinava o pregador aquilo que precisa ser um alerta constante para um mal que deve ser cortado pela raiz, de modo que governantes e governados não mais consigam reproduzir a rapinagem:
Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões […] Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente – que é o seu tempo – colhem quanto dá […] e para incluírem no presente o pretérito e futuro […] e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos (Vieira, 2024).
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Consciência cristã: um chamado à ação na democracia
A consciência e a responsabilidade cristã na democracia são, pois, disposições firmes de governantes e governados para um pacto contra a corrupção. Como assinala Jacques Maritais, o problema “[…] não é encontrar um nome novo para a democracia, e sim descobrir sua verdadeira essência e realizá-la” (Maritain, 1949, p. 38). E o próprio filósofo francês esclarece: “Em seu princípio essencial, essa forma e esse ideal de vida comum, que chamamos democracia, provém da inspiração evangélica, e sem ela não pode subsistir” (Maritain, 1949, p. 35).
O caminho para uma sociedade fraterna: a busca pela “amizade social”
Destarte, bem comum, justiça, direito e lei são antídotos da democracia contra a corrupção que tanto deforma a aspiração legítima de uma sociedade fraterna, na qual acolher e cuidar uns dos outros sejam marcos referenciais para uma “amizade social”, na significativa expressão do Papa Francisco, assinalada em sua Carta Encíclica Fratelli Tutti.
Marcius Tadeu Maciel Nahur
Referências
ALIGHIERI, Dante. Monarquia. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2006. 127 p.
AQUINO, Tomás de. Comentário à Política de Aristóteles.
Disponível em: https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1225 –
1274, Thomas_Aquinas, Aristotelis_Libri.Sententia_Libri_Politicorum ,PT.pdf1274.
Acesso em: 31 ago. 2024. 661 p.
AQUINO, Tomás de. Do Governo dos Príncipes ao Rei de Cipro. Tradução de Arlindo Veiga dos Santos. São Paulo: Edipro, 2013. 128 p.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. 2. ed. São Paulo: Loyola: 2012. v. VI. 711 p.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. 2. ed. São Paulo: Loyola: 2010. v. IV. 938 p.
ARISTÓTELES. Política. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2019. 352 p.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2018. 392 p.
FINNIS, John Mitchel. Direito Natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no contexto do juspositivismo analítico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007. 128 p.
JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de Aquino: sabedoria e arte de questionar, verificar, debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de teologia. São Paulo: Paulus, 2012. 888 p.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. 487 p.
MARITAIN, Jacques. Cristianismo e Democracia. Tradução de Alceu Amoroso Lima. 3. ed. São Paulo: Livraria Agir, 1949. 64 p.
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em: 31 ago. 2024.
SALVADOR, Vicente do (Frei). Historia do Brazil (sic). Curitiba: 2007, Juruá. 358 p.
VIEIRA, Antônio (Pe.). Sermão do Bom Ladrão. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000025pdf.pdf. Acesso em: 31 ago. 2024.